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sábado, 31 de outubro de 2009

Carta aberta a Gouvêa Lemos e a tecnocratas - Por Carlos Adrião Rodrigues

Esta "carta", escrita pelo Dr. Carlos Adrião Rodrigues, foi editada no jornal V.M. (Voz de Moçambique) de 06 de Fevereiro de 1972, quando Gouvêa Lemos estava de partida para o Brasil.


Carta aberta a Gouvêa Lemos e a tecnocratas.
Por Carlos Adrião Rodrigues


Meu caro Gouvêa Lemos:


Soubemos que se ia embora, por altura do Natal, época de Paz, Caridade e Amor, como mandam as virtudes cristãs. Por essa altura é costume as corporativas festas das empresas, onde bota formalmente discurso o director de companhia ou gerente. Nas taças verte-se, às vezes, champanhe - Monte Castro nas dos empregados, Moet et Chandon, sorrateiramente, nas dos directores. Tudo aquilo borbulha e os corações põem-se em uníssono quando o director fala. E o director fala sempre do capital humano. É de bom tom, é chique, está na moda. Director que não fala de capital humano arrisca-se a não ser cumprimentado na rua pelos seus colegas directores e a levar umas piadas no Sheik rico, quando se reunir com outros directores que Portugal precisa do seu capital humano, que é preciso fixá-lo à terra e alguns mais saudosistas, arriscando-se ao franzir de olho de um tecnocrata mais evoluído, dirá mesmo que todos não somos de mais para continuar Portugal. O que, aliás, é corroborado pelas estatísticas do último censo que aclaram que somos menos.

Ora este capital humano somos você e eu, meu caro Gouvêa Lemos, e outros como nós que não fomos para a França ou para a Alemanha ou mesmo para a pobrezita república vizinha, a da moeda fraca e desvalorizada.

Formam-se comités para fixar o capital à terra e dizem-se até que o director da companhia em que você estava era pessoa muito salutarmente activa em fixar a Moçambique esse capital humano itinerante que é o nosso soldado. E assim tem surgido, embora com a parcimónia dos nossos meios, o soldado-colono.

Pois é nesta altura que você, meu caro Gouvêa Lemos, que foi e é, o mais certo, o mais competente, o mais qualificado e o mais vertical dos nossos jornalistas, tem de deixar a terra, o país, a Pátria - e ir-se embora, para terra estrangeira, embora irmã na língua.

Você tem no seu palmarés, aqui em Moçambique, e que eu saiba, a 'Tribuna' (a tal); a 'V.M.' (semanário) e o 'Notícias da Beira'. Tudo jornais que você fez, de cujas vicissitudes não é responsável, mas que foram, durante o tempo em que você efectivamente os orientou, o que de melhor se fez no jornalismo em Moçambique. Muita gente que julgou que a 'Tribuna' era as 'deixas' da 1ª. Página, a 'V.M.' o impacto também da 1ª. Página, e o 'Notícias da Beira' o escorreito da paginação. Mas não era nada disso. Era, sobretudo, a dignidade do tom, a justeza das posições tomadas, a renúncia a excitações demagógicas do leitor e ao sensacional fácil. Tudo isto, por 'fas ou por nefas' - e se exceptuarmos a 'V.M.', evidentemente, onde só a qualidade se perdeu - desaparece ou se esbate quando você se afasta. Lembro-me que na 'Tribuna' bastou você ao fim de meses de trabalho sem folga ir à praia para aparecer o célebre 'Vamos chovar'!

Muita gente esquece-se que o jornal não é um tribunal, nem uma Assembleia; um jornal é um… jornal. Ali se arrumam os factos, se informam as pessoas e se expressam opiniões, com as quais se tenta formar as pessoas. Mas formar pessoas é, sobretudo, não arregimentá-las, é criar-lhes o sagrado hábito de pensar.

Tudo isto você tentou fazer. Foi um bom combate, mesmo que não tivesse sido ganho. Mas agora que a preocupação dos que dominam os jornais é precisamente oposta à forma como você encarava o jornalismo - não há dúvida que a única solução é emigrar.

Nós por cá, Gouvêa Lemos, vamos ficando. Somos cada vez menos. Muito provavelmente teremos alguns que lhe seguirão as pégadas. Já não somos sequer os puros que éramos, alguns anos atrás. Mas há uma coisa que ainda somos e por isso nos diferenciamos dos outros animais: seres humanos!

[In: A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano XIII, nº. 358, 6 de Fevereiro de 1972, p.2]


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