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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Carta ao Gouvêa Lemos - Por Eugénio Lisboa em 1964

Quem conheceu Gouvêa Lemos em Moçambique sabe que ele tinha como um dos grandes admiradores e grande amigo o Eng.  Eugénio Lisboa.
Algumas vezes o Eugénio Lisboa publicou para transmitir essa admiração através da imprensa, em especial na "Voz de Moçambique", onde GL teve participações como colaborador, especialmente quando teve que se afastar do que foi o seu maior sonho no jornalismo moçambicano, que havia sido o seu envolvimento e comprometimento com o projeto do jornal "A Tribuna".
Nesta fase o GL sofreu muitas presões dos todos poderosos do governo da província o que começou a criar problemas para a própria "Tribuna".
Foi, talvez, a maior crise que passou na sua profissão, pois acabou por se afastar da equipe da "Tribuna" e ficando desmpregado (na Tribuna já estava com problemas financeiros e com as dificuldades os chefes não recebiam antes de se pagar os salários dos colaboradores), o que gerou, é claro, grandes consequências na sua vida privada pois o  dinheiro faltou em casa e por um bom tempo a comida por lá chegava através de amigos. Nessa fase Gouvêa Lemos recebeu um convite para colaborar de forma mais ativa na "Voz de Moçambique", mostrando que por ali havia gente de coragem para, ao conhecerem profundamente o que se havia passado na "Tribuna" ,o convidarem para o seu meio.
Nessa fase o Eugénio Lisboa escreveu a "carta", que reproduzo abaixo, que teve grande impacto no meio jornalístico, na sociedade, e claro nos "pides" e outros poderosos.

Zé Paulo


CARTA AO GOUVÊA LEMOS (*)

À Quina


Caro amigo:

Esta carta que hoje me apetece escrever-lhe é, se não estou em erro, a segunda que lhe envio. A primeira escrevi-lha (mas não cheguei a publicá-la ou ela não chegou a publicar-se) aqui há uns bons anos atrás: era uma prosa cheia de uma argumentação miúda, com a qual tentava provar-lhe aquilo que até certo ponto os factos se encarregaram de mostrar que não tinha lá muita viabilidade de prova… Como discordávamos, acabámos por ficar amigos. Assim vai o mundo!
Mas hoje o caso é outro. Por que lhe escrevo? Para lhe ser franco, não sei bem se conseguirei encontrar, por enquanto, uma resposta que possa ir muito além de um caprichoso 'por que me apetece!' O caso é que vou escrever-lhe. E é até possível que, neste inútil exercício de um diletantismo que me é saboroso, eu acabe por encontrar, com alguma nitidez, o contorno das razões que por enquanto se me impõem apenas sob a forma nebulosa de uma violenta vontade de lhe escrever. Seja pois o que Deus quiser!
Dou ao diabo os escrúpulos que pudesse ter com a sua modéstia e aqui lhe vou dizer de frente o que até agora tenho andado a cochichar a alguns amigos comuns e sempre rigorosamente nas suas costas: Você é um jornalista de talento e, tanto para os que gostarão de o ouvir dizer, como para aqueles que vão gostar um pouco menos, como até para os que não vão gostar absolutamente nada, eu não hesitrei em lhe dizer que Você é não só o mais talentoso jornalista que tenho lido em jornais portugueses, como até um dos poucos que efectivamente honram essa profissão que o é tanto como qualquer outra. Mas esta opinião, que partilho de resto com vários amigos, não é ainda daquelas que tenho tido a preocupação de cochichar quando o apanho de costas voltadas. Se lha não dei já por estas palavras, tê-la-ei dado pouco mais ou menos nestes termos ou, em qualquer dos casos, não tive o cuidado expresso de lha não dar. Você não é mais vaidoso do que aquilo que é normal e até saudável ser-se e não ia portanto correr o risco de desintegrar-se só porque este seu modesto (mas malcriado) amigo é de opinião que Você, em matéria de jornalismo, é um 'truta' dos antigos. O que eu nunca lhe disse a si mas me tenho fartado de andar a dizer aos amigos (e aos outros) é que o seu talento, por muito que seja, é o que, em si, menos impressiona. Para lhe ser franco Gouvêa Lemos, estou-me até borrifando para o seu talento (já lhe disse que era malcriado!). Gosto, é claro, dele, como gostam todos os que o reconhecem, preciso (precisamos!) dele para que V.M. seja o que tem sido, aborrecer-me-ia imenso que os serviços que ele tem prestado deixassem de estar disponíveis, mas que quer Você?, sou feito assim: o talento e a inteligência das pessoas são qualidades admiráveis mas não creio que sejam elas, em si, aquilo que as torna pessoas dignas de estima e admiração. Até porque as pessoas possuidoras de tais predicados 'nada' fizeram para os ter: foi a Madre-Natura, generosa e propiciadora, quem lhos ofertou com maior ou menor dose de arbitrariedade. Você, Gouvêa Lemos, não tem afinal culpa nenhuma do talento que possui! Do que Você já poderia ser culpado, e muito, era de não o ter sabido até agora empregar! Tudo está na orientação que se dá a tão perigosos dotes… E é precisamente aqui que eu começo a entrar na zona do que até agora não tem passado de cochichos. É muito simples: queria dizer-lhe que Você, muito mais e muito melhor do que ser uma pessoa cheiíssima de talento (há-os para aí às dúzias, há até cada vez mais!) é uma pessoa de carácter e é também um homem profundamente bom. Isto sim, estimo eu, que é uma dura aplicação e conquista de todos os dias, que exige uma luta sem quartel contra o que em nós convida à complacência e que põe à prova muito mais do que os talentos que o berço nos legou.
Você é forte, da força dos teimosos e dos íntegros, possui da honra um conceito muito antigo, um daqueles conceitos absolutistas e um pouco 'farouches' que nós tínhamos quando éramos garotos e queríamos por força ser 'sempre' os últimos a cuspir. Mas você, com tudo isto, é sobretudo um homem cheio de bonomia, de tolerância e de bondade. Você só é mau, rigorosamente, para si próprio... Ai, porém, de quem queira pisá-lo! Você tem arriscado a vida (a sua e a dos seus), tem feito mais do que arriscá-la: tem-na francamente comprometido! Você tem passado mal, um mal que não é eventual, mas contínuo, persistente, corrosivo, daqueles que deprimem e oprimem, e no entanto, Você tem sempre uma palavra boa e um ar de optimismo que crucificam o mais pintado. Você tem tido todas as razões (e mais uma) para há muito se ter rendido e, no entanto, mesmo já sem balas, Você ainda usa o bacamarte à laia de cacete. Voltando ao meu tempo de miúdo e pondo-me a lembrar um velho e esquecido filme de Orson Welles (chamava-se 'Jornada de Pavor' e às vezes há razão para ter pavor), Você tem frequentemente sido o pobre do Joseph Cotton, também bonzão e tolerantíssimo, encurralado num quarto no extremo do corredor de um navio sinistro, rigorosamente sem saída, cercado por todos os lados (como as ilhas), sem armas, mas considerando muito a sério a possibilidade de salvação por via de um minúsculo canivete limpa-unhas! Confesse, Gouvêa Lemos, que era optimista e resistente o bom do Joseph Cotton! Teimosa raça de honestos que Vocês são! Embirrantes criaturas, chatíssimas trepadeiras, que despistam todos os cálculos daqueles para quem tudo é cálculo! É o que os desbarata - esbarrarem com algo que não tinha sido incluído nas previsões do orçamento: a honradez, a inteireza, as barbas do Vice-Rei! E ficam logrados…
Dizia o bom do Alexandre Dumas Filho (regressámos à infância, lembra-se?, perdoe-me pois o pouco alevantado das citações…), dizia ele, o Alexandre Dumas, Filho, que 'a honestidade é a maior de todas as malícias, porque é a única que todos os maliciosos não prevêem'. Como é verdade! Que grande malandro, no meio de toda esta tristeza, Você acabou por me sair, ó Gouvêa Lemos! Alguns deles a contarem que Você fosse se entregar e Você com aquele seu ar arrelampado, de olhos muito abertos e bigode murcho, a dizer na voz arrastada que a gente lhe conhece: 'Eu lá disso de contas não sei nada! Eu até só sou teimoso!…'
Pois é verdade, sempre acabei por achar aquilo que lhe queria dizer. Era afinal tão simples: do que gosto, em si, é, sobretudo, da honestidade, da tolerância, da bondade e dessa tão embirrenta maneira de ser 'malicioso'… Parece-lhe pouco?
Salvé, amigo velho! E até à próxima que há-de ser, se não estou em erro, no sábado, ao café, depois do almoço. Para nada em especial, apenas com o fim de, como diz uma boa amiga nossa, 'discutirmos um assunto',

Seu,

Eugénio Lisboa

[Semanário 'A Voz de Moçambique', nº. 146,de 13 de Setembro de 1964]

 * A Quina era a hoje falecida esposa do advogado e intelectual moçambicano Dr. Adrião Rodrigues, amigos em comum do Eugénio Lisboa e Gouvêa Lemos.

*Pides - Os que serviam direta ou indiretamente à PIDE, policia politica do regime fascista de então.

5 comentários:

  1. Um belo texto que mais soa como uma elegia a um amigo.
    É bom ler neste texto e teus comentários, nomes de pessoas que pertenciam a uma mesma cepa de boa “madeira-de-gente”. A começar pelo o autor do texto, passando-se pela “tia” Quina, irmãos Adrião Rodrigues, etc Eram pessoas que não se vergavam a populismos, modismos ou radicalismos, seja de qual orientação ou pressão ideológica, que fossem. Donos de integridade e idoneidade exemplares, preferiam quebrar, do que se vergar sob pressão.

    Exemplos cada vez mais raros no mundo da imprensa e política actual, que jamais deveremos esquecer.

    António Maria

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  2. Má nada ! Os dois disseram tudo...ou os três .

    apenas assino

    Teresa a Tareca para todos vcs e eles

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  3. Eita que bacana, estou sentindo o sangue borbulhar, vou me perder por uns dias lendo,
    e como e' bom ler e recordar.
    Outros comentarios virao, vou curtir o que nao curti na devida altura.
    kanimambo ZePaulo, por esta oportunidade.

    Do xamuare e mano zambeziano,
    Joaoroldao

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  4. ....Gostei muito ! Faz-me lembrar, então, algumas das estadias do Tio António no Zónuè ... talv^z, para recarregar as baterias e dár uma boa descasada perto de nós e dos bichos e plantas lá da Boa Entrada e do Tchioto.

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  5. Duas gratas supresas por aqui. O mano zambeziano que faz parte da história dos M.C.G.L.
    E junto chega um M.C. recordando as estadias no Zónuè.
    Sem dúvida, Zé, que ele ía para lá recarregar baterias...e nós, descarregar... rssss
    Grande abraço aos dois.
    Zé Paulo

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