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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

CARTA DO BRASIL

 Por Gouvêa Lemos em 7-1-1963 - A TRIBUNA (Moçambique)

O leitor não tem nada com isso - a minha vida particular não lhe interessa - , mas eu vivi no Brasil. Sim, vivi lá, tenho lá família, tenho lá amigos e bastos motivos de saudade, tenho duas filhas brasileiras e tanto me interesso pela vida do Brasil que até lá andei metido em políticas. Políticas brasileiras, claro. E de tal maneira que, lá, eu até era da oposição e ninguém via mal nenhum nisso.
Explicando melhor : apesar de não ser brasileiro, achavam os brasileiros das minhas relações que, só porque eu vivia no Brasil, ali produzia algo, ali contribuia de qualquer humilíssima forma, para o progresso do Brasil, nem que fosse únicamente pagando imposto, achavam eles que eu tinha o direito de fazer críticas à administração, de discordar do Governo, de ter, em suma, opiniões políticas.

Os brasileiros são muito giros...
O que é certo é que eu usava esse direito, com uma descontracção explicável sómente pela força aliciante de tamanha liberdade, pelo entusiasmo decorrente de tanta compreensão.
Assisti à eleição do Presidente Juscelino, lá permaneci durante o Governo do Presidente Juscelino - eu era contra o Presidente Juscelino. Tão contra como os que iam aos mesmos comícios que eu procurava, da Praça do Congresso a Caxias do Deputado Tenório. Eu era contra, mas como estimo hoje o Presidente Juscelino, de tanto poder ser contra ele!
Vem tudo isto a propósito das cartas que recebo do Brasil, da minha mãe e dos meus irmãos, pondo-me às vezes em dificuldades para lhes responder, tal a confusão que lhes lavra no espírito sobre certas coisas que, à distância, são inexplicáveis (para me livrar de trabalhos, já tenho respondido que não posso responder) e nas quais me são contadas todas as dificuldades, todos os problemas, todas as tarefas que a família enfrenta, que a vida lhes opões, a par das pequenas alegrias e tristezas vulgares que são tema das cartas familiares. E tudo isto é mesclado, sempre, de comentários, de notícias, de esclarecimentos, de muitas espinafrações à política, ao Governo, de queixas contra os governadores de Estados, contra os ministros, contra o Presidente da República (a minha mãe não gosta do Jango Goulart), a propósito do custo de vida, a propósito do preço do gado, a propósito de tudo e de nada. Que beleza!
Aqui há tempos, mandei dizer a um irmão meu, preocupado com coisas que não lhe esclarecera devidamente em cartas anteriores, que já tinha percebido o seu grande amor pelo Brasil, a sua perfeita adaptação ao grande país, à maneira de ser do magnifico povo, pelo seu tom severo e exigente de referir-se às coisas públicas do Brasil. "Estás bom, meu irmão. Estás maduro. Deus te salve e ao teu Brasil".
A minha Mãe, que quando as vacas se vendem mal, ou não chove para os lados do Rio Pardo, no interior da Baia, se dá a excessos de pessimismo, escrevia-me há dias: "Não sei onde isto vai parar, mas tenho muita fé".

Gostei e vou responder-lhe:

"Tenha fé, senhora mãe. Tenha fé que onde vai o Brasil parar é muito longe e muito alto. Continue a mandar-me dizer mal do Jango e a aspirar por um presidente inteiramente "udenista", um Juarez, um senhor muito fino e respeitável das direitas. Continue a escrever-me sem medo do que pensa, e diga aos manos que também, que discordem, que falem, que se preocupem. Vivam cada minuto brasileiro com esse entusiasmo, com essa unção, compenetrados de que tudo é, ao fim ao cabo, negócios de família. E mandem-me dizer, oh! mandem-me dizer sempre, que me sabe muito bem ler isso que pensam e com o que , aliás, eu nem concordo. Mas digam, digam, livremente o que lhes parece dessa terra que é sua, minha mãe, e vossa, meus irmãos, e dessa gente admirável que afinal vós sois também."
"Escrevi toda a casta de espinafração contra o que não vos quadra ao parecer que tendes e á opinião que defendeis. Escrevi, que eu irei respondendo, assim sem jeito, atabalhoadamente, que não sei responder."
As cartas do Brasil, leitor, fazem-me reconstituir o espírito; dão-me saúde. Não só porque mato saudades da família - ou as exacerbo, o que vem a dar no mesmo - como renovam a fé que tenho no Brasil. Que tenho no futuro, vivendo em Moçambique e recebendo cartas da família.

4 comentários:

  1. Através dele (de sua mãe e irmãos), o Brasil sempre foi um outro lado da nossa nacionalidade de cidadões do Mundo. Em Moçambique o Brasil nos era sempre muito presente, não só nas vitórias de Pelé, Tostão, Jairzinho, Gérson, Rivelino e Cia, como nos acontecimentos políticos. Aliás o jornalismo e a política eram uma espécie do sexto e sétimo filho, que ele não teve.

    Hoje mais do que nunca o entendo e percebo que a minha viagem da vida espalha as minhas raízes. Talvez não sejam profundas como algumas árvores necessitam para sobreviver, nem feito feijão que morre ao ser transplantado,e sim, bem espalhadas e enterradas culturalmente por três continentes completamente diferentes. Elas ficam cada vez mais parecidas com as de um forte e estável Embondeiro(Baobab). Isso nos traz vantagens em termos de visão global, nos pondo fora daquela visão fechada de quintal, mas também nos aumenta as preocupações e vitórias espalhadas por todas as partes das nossas raízes.


    António Maria

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  2. Penso que a possibilidade de andar por "continentes" ajuda a abrir a mente. Mas mais necessário é ter iniciativa de deixar a mente aberta para ver e entender o que se passa à volta, sem preconceitos. Esta me parece que era a grande característica do Pai... a quem o seu filho Tó Maria puxou.
    Agora, falando mais especificamente desta crónica, imagino a pancada que ele deu, e os riscos (mais uns) que assumiu, ao escrever isto em um dos períodos onde o Pai mais recebeu presões e controle da PIDE e da censura, quando falar em liberdade de expressão soava logo a "comuna" que se alimentava de criancinhas.

    Zé Paulo

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  3. Sem dúvida ele era "forrado" de couro, com todo o respeito que ele merece. Mas as perseguições foram tantas, que mal me lembro se houve alguma época, onde ele não tivesse escrito sob a mira da censura, da PIDE...e outros tais que o consideravam traidor das causas nacionalistas lusas.
    Por nunca ter assinado cheque em branco, seja ás esquerdas ou direitas, não fossem as fortes amizades, o caminho dele por este mundo, teria sido ainda mais curto.

    Tó Maria

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  4. Sem duvida que não houve momentos, depois de identificada a visão do Homem GL do mundo e da provincia que não tenha ficado na mira dos "pides". Mas é também facto que na fase do evento da "Tribuna" e durante a sua participação nesse sonho que os pides, orgãos auxiliares e informantes e alguns poderes "privados", mais apertaram o Pai.
    E foi aí também que "surgiram" de forma clara(que demonstraram mais do que nunca) os amigos a que tu te referes.
    Foi uma fase, que ainda que nós dois fossemos muito miúdo e ainda que pareça de forma incongruente, nos marcou muito pela positiva.
    Ali faltou comida em casa, ali o Pai chorou depois que mandou à merda o Governador quando este lhe fez chegar um convite para ser embaixador em um país africano (Malawy ?) como alternativa para o afastar do jornalismo luso-moçambicano, aproveitando a total fragilidade financeira que atravessava...chorou ao dizer à Mãe que jogava fora uma oportunidade de uma vida material bem melhor para os filhos. A Mãe, sábia, confortou o Pai ao lhe dizer que ele tomava a decisão certa. A Mãe foi sábia pois ali recebemos uma bela carga de boas maneiras de se estar no mundo. Esta história foi sempre usada, ainda depois da morte do Pai, por muitos dos chapas dele, e pela nossa Mãe, para nos passarem a visão do mesmo e nos ajudarem a "sermos educados" por um Pai já não presente e com quem tivemos um curto espaço de convivência por ter morrido quando nós ainda continuavamos sendo umas crianças, eu com 11 e tu com 12 anos.
    Uma história que gosto de relembrar... rssss...tanto que a tenha relembrado hoje ainda que fugindo um pouco do tema, que é a crónica "Carta do Brasil".
    Beijo meu irmão.
    Zé Paulo

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