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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

POR MAUS CAMINHOS


Enquanto esteve na Beira, de passagem para Lourenço Marques, o ministro das Obras Públicas, engo. Arantes e Oliveira, percorreu a cidade em companhia do presidente da Câmara Municipal, dr. Janeiro Neves, e do secretário provincial, dr. Andrade e Silva.
Andou o sr. Ministro por um lado e por outro desta Beira em obras, desta Beira que precisa de obras, principalmente de obras públicas e, de certo, o engenheiro ilustre sentiu-se em casa ao percorrer uma cidade em contínua construção, uma cidade inacabada, uma cidade-estaleiro.
Andou o sr. Ministro por maus caminhos e andou muito bem, pois sabemos que essas andanças lhe quadram ao feitio além de condizerem com a função. E também porque a Beira, só por si, justificaria um ministério de Obras Públicas, tal como o sr. Ministro, certamente ficou a pensar, quando terminou a sua rápida corrida por ambas as margens do Chiveve.
Por nossa parte, ficamos a pensar em que talvez tenhamos razão se ficarmos com a esperança nos resultados possíveis desta corrida ministerial pelos maus caminhos da Beira. Todos nos dizem e nós acreditamos que o engo. Arantes e Oliveira, além de técnico competente e de conceituado homem público, é pessoa de boa vontade e coração, que não deixará de se lembrar com interesse construtivo e solidariedade activa, desta jovem cidade que lembra uma rapariga partida, engessada, com muletas.

A.    V.

Notícias da Beira – Pág. 3 – 17 de Setembro de 1966


Obs.: “A. V.”  era o pseudônimo do Gouvêa Lemos, usado quando ele acreditava que o seu texto poderia ser censurado se colocasse o habitual G.L.. A. V. era na verdade a sigla de António Veríssimo, os dois primeiros nomes de António Veríssimo Sarmento Gouvêa Lemos.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

REPETINDO UMAS COISAS ÓBVIAS - Pegue-se no futuro de Moçambique...


"1963 X 2012" ou "1963 = 2012"
Pegue-se no futuro de Moçambique, de que tanto devemos cuidar, e como quem olha um poliedro, miremos-lhe as faces, uma por uma: sempre havemos de constatar uma necessidade urgente e iniludível, a condicionar e a implicar-se em todas as outras necessidades e chama-se ela desenvolvimento económico.
Pense-se na promoção social das populações, de que vemos gentes de vários feitios ocupar-se por formas diversas e com intenções diferentes, e logo se sente que pouco ou nada poderá fazer-se, se essas populações não forem promovidas economicamente.
Fale-se em consciencialização política ou esclarecimento cívico dum povo, para o habilitar a exercer direitos consignados na lei, e imediatamente se vê que a quem se aplica não tem um nível económico exigido.
Lembre-se a instrução, indispensável ao homem moderno, urgindo sobretudo onde ela tem de começar pela alfabetização de milhões de pessoas, ao mesmo tempo que deve exercer-se também em graus superiores, para constituição de elites intelectuais e formação profissional, e logo nos assustaremos de pensar o que haverá de ser ocupação adequada de quantos forem saindo das escolas, dos institutos, dos liceus, das faculdades universitárias, se um vasto programa de instrução não for acompanhado, apoiado e justificado por um surto simultâneo de desenvolvimento económico.
Veja-se como será inválida qualquer actividade séria no campo da saúde e da higiene, se a massa populacional sobre a qual se exerce não tiver possibilidade de elevar o grau da sua saúde colectiva, se não conseguir apurar os seus hábitos de higiene, se não tiver meios materiais e não dispuser de processos técnicos que lhe assegurem um estado aceitável de sanidade, se, em suma, a sua situação económica não lhe permitir praticar as teorias, dar continuidade às práticas e efectivar os seus resultados.
Repare-se em como será inviável a elevação espiritual de quem não tenha da vida uma concepção diferente da que lhe dá a preocupação da sobrevivência.
Ora, estas coisas tão simples como todas as de bom senso preocupam., afinal, quantos sejam conscientes e se encontrem em Moçambique e fazem que ninguém de boa fé possa admitir a fuga às obrigações que tais realidades impõem.
Moçambique tem no seu território enormes capacidades de riqueza, umas conhecidas e muitas apenas adivinhadas, mas sabendo-se de todas que são mais que suficientes para dar aos seis milhões e meio que aqui vivem e aos mais que vierem a viver excelentes condições económicas. Esse potencial tem de ser utilizado. Vai ser utilizado. Se não se fundasse nesta determinação, nenhuma política se justificaria.
O remédio de todos os males não está no processo simplista de aumentar salários; o que se impõe é o aumento da produção, a criação de riqueza, para se enfrentarem então os problemas da sua melhor distribuição, seja através de salários, seja na participação de lucros, seja pelo sistema que o povo escolher.
O que tem de haver é aquela certeza acima referida, generalizada e por todos vivida, de que o homem de Moçambique usará a riqueza que Moçambique oferece, parecendo-me, por isso, inoportunos certos rumores de pessimismo, que se manifestam até para condenar iniciativas daqueles que acreditam no futuro desta sua terra, baseando-se os velhos do Restelo em que os tempos vão muito maus.
Se os tempos vão muito maus, terão de vir a ser bons, mesmo contra a vontade de alguns.

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano IV, nº 96, 28 de Setembro de 1963, p. 10]

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

OS PSEUDOS



Eis que nesta Lourenço Marques tão garrida apesar dos pesares, remirando-se na baía nem sempre espelhada do Espírito Santo, encanudando e frisando os polanas e os somerchildes e escondendo os caniços, pupulam cada vez mais pululantes os pseudos.
É encantadora, chega a ser comovente a desfaçatez com que actuam livremente, muito livremente aliás, com uma liberdade só deles, certos pseudo-intelectuais, sem um mínimo de dignidade intelectual, que são pseudo-jornalistas, fazendo dos jornais postigos de delação, que são pseudo-escritores, escrevendo sandices com citações mal digeridas à mistura, que são pseudo-patriotas batendo-se por que se espete com a Pátria num atoleiro. São até, nas horas vagas, anti-racistas, generosamente, magnânimamente, como seres superiores que se julgam, detentores do direito a tais abdicações, mas quando se lhes mostra que mesmo nessa pseudo-generosidade paternal há racismo, os pseudo-humanistas enfurecem-se e gritam. E, em situações taís, pode acontecer que peçam uma balança para pesar encéfalos ou uma guilhotina para cortar cabeças, invocando Darwin em latim mal copiado ou Fidel Castro em português sem gramática. Isto é, quem for de cor diferente leva poucos miolos, quem for de opinião diferente fica sem miolos nenhuns. Mas não são maus homens, os pseudos. Até dão esmola aos sábados.
Oh! como andam activos, os pseudos!
Vem um, e de pera em punhal, ameaça com «el paredon» em estilo cubano os colegas e os «grupinhos» (os «grupinhos» são as suas varizes) da «Imprensa contra a Nação». Mal da Nação se a «Imprensa pela Nação» fosse a que ele abrilhanta.
Vem outro, e - tem graça! - também de pera em naifa, ruge impropérios contra quem chama traidores e antipatriotas (pobre da pátria que o pôs, se não fosse melhor servida!), sugere o fechamento de jornais, talvez porque se negaram à sua prosa que não escolhe poiso e esquecendo na precipitação polémica que, até porque isto de políticas é, como ele bem sabe, coisa sujeita a grandes contingências e reviravoltas, sempre será melhor haver mais jornais que menos, não só para os jornalistas mas até para os pseudos.
Oh!, senhores! como eles andam mausões!...
O pior é que - e só por isso eu dedico estas linhas aos pseudos - eles berram, barafustam, gesticulam e esbravejam e devem cada vez mais considerar-se certos e infalíveis, perante o silêncio de quem não quer e não pode, pô-los nus na praça pública, revelando-lhes a estatura e as mazelas.
Acabavam-se os pseudos. Calavam-se os activos, desiludiam-se os passivos, divertia-se a multidção, era uma santa higiene.

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano IV, nº 77, 18 de Maio de 1963, p. 12 e 11]

domingo, 14 de outubro de 2012

NEGRÓFILOS E NEGRÓFOBOS


Ninguém é obrigado a conhecer esta matéria, trata-se de coisa novíssima.

Assim como, a todo o momento, a ciência, em permanente evolução, em eterna busca e ininterrupta conquista, nos oferece mais um ramo, um diferente caminho, também a ignorância - oh! a bruta, a fera, a mexida ignorância - nos revela uma novidade, nos desvenda uma vereda inesperada, nos agride com um atrevido rebento.

E nós, os pobres homens, trocamos os olhos entre os pratos da balança, num deles Einstein, sereno, esclarecendo o Universo; no outro, D. Cretino Polit y Castro, aos pulos, não deixando a balança quieta.

A mim, por exemplo, chamaram, outro dia, negrófilo. Fiquei aflito, quer será isso, meu Deus, fui ver ao dicionário. Não porque eu fosse incapaz de recorrer à etimologia, por acaso sabia muito bem decompor a palavrinha, negro é preto, filo vem do grego, philos, quer dizer amigo, negrófilo seria amigo dos negros, nada de mal, pelo contrário, eu era uma pessoa decente, bem formada, um tipo fixe, sim senhor.

Ora o dicionário confirmou o meu humilde saber, fiquei sem perceber qual fora a ideia de me acharem aquele senão. O Cândido de Figueiredo só acrescentava que negrófilo também se chamava ao partidário da abolição da escravatura, mas isso não podia ser, olha o disparate, escravatura já não há.

Cismei uns minutos, não muitos, que eu por acaso até gozo de uma certa agilidade mental, e optei por averiguar o que seriam os meus acusadores, o que sentiriam, o que pensariam, para me censurarem aquilo. (Note-se que eu nem estava zangado ou ofendido com eles, pois se tratava, inegavelmente, de pessoas generosas, concedendo-me imerecidas vantagens no seu julgamento; só é pena, diziam, que seja negrófilo).

Claro está - concluí eu - que verberando em mim tal coisa, os meus estimáveis juízes devem ufanar-se do contrário: o antónimo de negrófilo, não preciso de perguntar a ninguém, é negrófobo. E senhor desta descoberta, iniciei-me na nova ciência, trémulo de emoção investigante. Mentalmente, espichei o indicador direito e apontei para mim: eu sou negrófilo; eles são negrófobos, e apontei para eles.

Cândido de Figueiredo sorriu-me e confirmou: negrófobo é o que tem negrofobia; negrofobia é ódio aos negros: Ai!!! que susto!...

Juro que tive um arrepio de horror, quando cheguei ao fim do meu ordenado raciocínio. Não por mim, que estou a coberto da lei, mas por eles, coitados, pessoas consideradas sérias, com responsabilidades, usando um ar severo e uns nomes respeitáveis (bem sei que alguns são uns pobres vagabundos, embora de analfabetismo muito actuante, em todo o caso seres humanos), por eles, sim, pobrezinhos, fiquei eu assustado, pois se a Lei é Lei e a Constituição vale, se a Civilização ocidental, se os princípios cristãos que enformam a nossa estrutura social, etc., se a nossa blandícia de costumes, oh coisa doce sem par no Mundo, se tudo isso, que a gente sabe e ouve e lê, tem valor, se, enfim, há sinceridade nisso; então não resta dúvida nenhuma de que esses desgraçados - que pena eu tenho das famílias! - estão aqui, estão todos presos.

A Polícia deve andar de olho neles. Com certeza, tem os negrófobos todos fichados e sob constante vigilância, pois que suspeitos são eles, os insensatos, de traição ao que há de mais sagrado, ao sangue dos ancestrais, à própria razão de ser da Lusitanidade, alastrando por todos os continentes, diversificada em tantas raças, mais feita de negros que de brancos.

Ai! dos negrófobos! Ai! dos traidores!
Que segurança dá ser negrófilo, estar-se a coberto da Lei, protegido pela Autoridade!

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano 4, nº 68, 28 de Fevereiro de 1963, p. 12 e 10]