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domingo, 10 de fevereiro de 2013

Morre mais um pedaço da história da imprensa moçambicana?


Ser filho do Gouvêa Lemos deve ajudar a ter um sentimento de injustiça pela memória curta de grande parte de moçambicanos e portugueses em relação à sua importância no jornalismo luso-moçambicano nos tempos de Moçambique colônia.
Entendo que as novas gerações não saibam quem foi o jornalista e assim não conheçam a sua história. Mas me entristece que pessoas ligadas ao jornalismo moçambicano, e português, alguns que foram ainda seus contemporâneos, não busquem colocar o seu nome em evidência pelo menos quando as circunstancias assim apontam. O mundo anda, nós envelhecemos, e assim nos últimos anos temos perdido importantes personagens da imprensa e da literatura que foram testemunhas vivas  e atuantes de uma ditadura colonial e que com as suas penas e tinteiros digladiaram com as injustiças daqueles tempos. As lutas eram tão intensas que as suas necessidades pessoais, e das suas famílias, ficavam quase sempre em segundo plano. Não morreram com balas no peito, mas perderam anos das suas vidas pelos ideais em que acreditavam.
Gouvêa Lemos foi um desses homens. Um homem justo. Um homem que valorizava os homens. O poeta José Craveirinha, o fotógrafo Ricardo Rangel foram dois dos muitos nomes que tiveram o privilégio de conviverem profissionalmente com o chapa Gouvêa Lemos, como Craveirinha o tratava, e com o Mestre, como Ricardo Rangel o reverenciava.
Tenho o blogue “Jornalista Gouvêa Lemos” como um espaço para matar saudades do que pouco tenho acesso das suas crónicas e como uma humilde forma de dividi-las com leitores que por algum motivo tenham interesse de voltar ao passado e entender como homens como Gouvêa Lemos conviviam com a realidade daqueles tempos. Nos três anos que eventualmente atualizo algum material, foram raras as vezes que fiz referencias ao Jornalista. O foco é sempre a reedição de alguns dos seus textos, e quando busco fazer algum comentário o faço como os demais leitores, no espaço apropriado a leitores.
Hoje, pela ocasião do falecimento do seu contemporâneo Fernando Magalhães e por comentários que me fizeram chegar sobre um texto editado no jornal SAVANA, de Maputo, acabei por sentir necessidade de fazer algo como um desabafo, aproveitando para me despedir mais uma vez do meu Pai quando digo adeus a um seu amigo e colega de profissão. Cada vez que um dos seus chapas se vai deste mundo, sinto um pouco mais a perda do Pai. Creio que isso esteja relacionado ao tê-lo perdido muito miúdo. Tinha eu os meus 11 anos de idade, e como filho era ele, como todos os pais, o meu Pai Herói. Dali para a frente conheci o Pai e o Jornalista pelos seus amigos e o Pai pela minha Mãe.
No livro 140 ANOS DE IMPRENSA EM MOÇAMBIQUE, editado pela AMOLP em 1996 com a coordenação de Fátima Ribeiro e António Sopa, Fernando Magalhães foi escolhido para escrever sobre o seu amigo Gouvêa Lemos. Como homenagem a ambos, transcrevo aqui algumas das suas frases do texto que intitulou como “GOUVÊA LEMOS: O HOMEM QUE QUERIA SER JORNALISTA”:

“Conheci o Gouvêa Lemos no início dos anos 60. Ele era chefe ou subchefe de redacção do Notícias e eu tentava a minha carreira de jornalista na muito desprezada “Reportagem” onde tínhamos a obrigação de relatar o que se passava na capital de Moçambique (Província). Fazia portanto a “tabela de marés”, a meteorologia,...”
“A Censura lia tudo, cortava o que queria e era necessário saber escrever para a censura. Gouvêa Lemos, irônico, impunha-nos o respeito pelas técnicas do jornalismo. Destruía com o seu sarcasmo os narizes de cera que os redactores prestigiados queriam impor. Para ele os rumores iam directos para o cesto dos papéis ou quando muito podiam ser tratados em crônicas até porque aquele era um tempo de muitos rumores e poucas notícias permitidas.”

“Não tinha sido em vão que ele passara parte da sua juventude a trabalhar em jornais brasileiros como o Estado de São Paulo. Só que por aqui a Censura dava-lhe poucas hipóteses."
“Mas para Gouvêa Lemos a técnica do jornalismo era sagrada. Foi ele o primeiro a meter-me na cabeça uma das regras de ouro do jornalismo anglo-saxónico: os factos são sagrados e as opiniões livres.”

“Murmurando contra o cinzentismo do Notícias chegamos a 1962 e quando eu já me preparava para escolher uma profissão mais apaixonante o Gouvêa Lemos convidou-me para fazer parte dos quadros de um novo jornal que seria uma pedrada no charco: a Tribuna. A sete de Outubro de 1962, numa noite incrivelmente quente em que ninguém ligado ao jornal dormiu, saiu o primeiro número. Claro que estivera para sair alguns dias antes. Mas tal como hoje amontoavam-se as insuficiências, algumas más vontades paralisadoras e um facto muito importante: a coordenação do caos de idéias e teimosias de um grupo numeroso de gente de boa vontade que sabia de tudo, menos do que é fazer um verdadeiro jornal.

“Coube ao Gouvêa Lemos ser o homem que organizou o caos de grandes idéias e enormes boas vontades transformando esse caos no que a Tribuna foi. Um jornal moderno tão bom como os que faziam nas grandes capitais do mundo e como verdadeiro jornal reflectia o mundo e o Moçambique do momento."

“Um jornal que soube apanhar de surpresa as autoridades metropolitanas que nem sonhavam ser possível que por cá houvesse conhecimentos técnicos e atrevimento para se fazer um jornal assim. Um jornal que aproveitava as hesitações e ambigüidades do regime e as tentativas de abertura de homens avançados como o Ministro do Ultramar Adriano Moreira ou o Governador Sarmento Rodrigues, para dar notícias e ter opinião.”

“Foi até ao fim um mestre jornalista. Ao mesmo tempo um idealista e um técnico pragmático. Lembro-me de uma vez lhe ter perguntado na Beira (estávamos no fim dos anos 60) se afinal ele era português ou moçambicano. Disse-me que se estava nas tintas para isso. Que era um jornalista honrado.”

A imprensa moçambicana faz justas homenagens ao jornalista Fernando Magalhães que tanta importância teve para o seu jornalismo , mas derrapa mais uma vez ao deixar o nome de Gouvêa Lemos, e de outros, de fora de referências a passagens como o do jornal “A TRIBUNA” que na década de 60 foi um projeto audacioso a que o Fernando Magalhães se refere no seu texto.
Não li mas soube por um amigo, residente em Maputo, que o jornal SAVANA publicou no último dia 8 de Fevereiro um texto dedicado a este jornalista e o relaciona à história do jornalismo moçambicano com a sua passagem pela “TRIBUNA” fundada pelo João Correia Reis, onde em mais um exemplo a imprensa atual de Moçambique se mostra injusta com este capítulo tão importante da sua história.
E ironicamente falando, nem a PIDE na época via esse tema dessa forma. A 2 de Outubro de 1962 um inspetor da PIDE dava conhecimento ao seu subdiretor o nascimento deste novo jornal em território moçambicano. O documento identifica neste primeiro documento quatro nomes: o de Frederico Madureira como diretor, o do João Reis como editor e o de Gouvêa Lemos como chefe de redação. Fala ainda no nome de José Baptista Oliveira como sendo responsável por contratar na Metrópole pessoal para a tipografia.
Em Outubro de 1962 é expedido pela PIDE outro documento confidencial onde além destes nomes aparecem os nomes de Ilídio José da Rocha, Adérito José Lopes, Domingos Augusto Vieira Azevedo e José João Craveirinha. Por algum motivo os nomes de Gouvêa Lemos, do Ilidio Rocha e do Domingos Azevedo estão sublinhados a vermelho.
Anexarei estes documentos para que possam ser apreciados como parte da história de Moçambique colonial.
Tenho a convicção que os profissionais do jornalismo moçambicano não haveriam de perder, e sim a ganhar, se buscassem conhecer melhor a história de Gouvêa Lemos que é componente de grande importância da história do qual fazem hoje parte.
Não nos devemos esquecer que o hoje não existe sem o ontem. Quando se esquece existe grande possibilidade de se ficar patinando no que seria o futuro.
Abaixo coloco as cópias dos documentos da PIDE a que me referi. Fico com o compromisso de em outra oportunidade de colocar neste blogue outros documentos relacionados ao cidadão luso-moçambicano e jornalista Gouvêa Lemos.