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terça-feira, 2 de setembro de 2014

Eutanásia

Coluna “Teclado Universal” 
de Gouvêa Lemos
Jornal Tribuna – 1962


Desde muito pequeno, Eutanásia me significou nome de mulher. Aliás, feio nome. Mais tarde, quando comecei a ouvir umas conversas de gente grande entre os meus pais e os meus tios que eram médicos, estabeleceu-se outra confusão e passei a considerar eutanásia uma doença rara, vindo do Oriente. Só maiorzinho, já a bulir em dicionários e a ler uns livrinhos, é que percebi que a eutanásia pode ser sinônimo de assassínio.
Matar uma criancinha é cometer um infanticídio. Infanticídio é (horrível) assassínio, em principio punível por lei – parece que em todo o mundo. Há, no entanto, circunstâncias que, frequentemente, fazem que um assassino não seja punido; mas não conseguem que deixe de ser assassino.
Por isso, em relação ao famigerado julgamento de Liège, o que se pode ser discutido é a justeza da sentença, no caso especial a mãe desventurada que pariu um filho defeituoso, em consequência de uma droga que tomou e tem provocado monstros em outros ventres maternos. Devia ou não ser absolvida, como foi a ré Susane Vandepute, acusada de matar o seu filho?
(Aqui pode usar-se o eufemismo ‘eutanásia’). Considerados as circunstâncias em que praticou o infanticídio, devia ela, ou não ser condenada?
Até porque na formação da resposta – tal como aconteceu com a população de Liège – entram ainda factores de ordem emocional, acredito que a um largo inquérito assim feito, aqui na nossa cidade, respondesse uma notável maioria de aplausos aos juízes belgas.
Mas a questão fundamental é a do princípio, que à Humanidade interessa conhecer até que ponto foi abalado com este caso; o que mais deve preocupar-nos é verificar as roturas produzidas em toda uma estrutura de regras sociais e códigos morais e jurídicos, mas não vá ficar aberto um importantíssimo precedente, segundo o qual ao Homem cabe o direito de controlar pela supressão de vidas, a continuação da sua espécie.
Isso sim, parece-me fundamental. E tanto, que, por poderem responder afirmativamente a essa pergunta, foi que os teóricos do nazismo justificaram a morte científica (eutanásia não é morte científica?) de milhões de judeus, a esterilização de seres humanos ‘inconvenientes’ ao Homem, a aniquilação total de uma raça “inferior”.
Em face de cada caso isolado, nos podemos comover-nos, exaltar-nos ou encolerizar-nos; mas para lá do acontecimento e acima da pessoa em causa, temos de descortinar a sua representação no plano universal, a sua repercussão em toda a Humanidade.
Neste caso, eu perfilho o ponto de vista cristão; estou com  o “Observatore Romano” e concordo com o Padre José Alves, na sua resposta ao inquérito deste jornal. Mas parece-me que a um ateu não faltam razões para esta mesma posição, mesmo ignorando o quinto mandamento; não matarás!
-         Pois não será a eutanásia desumana e anti-natural?
-         Não será uma abdicação inglória – à priori – da Ciência, que sabe estarem à sua espera os mistérios que se hão-de abrir, a um, à sua passagem lenta mas determinada e heróica?
-         Não será uma atitude cobarde, a da mãe, pegando-se a cumprir um mandado da natureza, feito de carinho, persistência, abnegação e esperança?
Quais serão, ao fim e ao caso, as razões aceitáveis da eutanásia, que não se situem num plano inferior da natureza humana?  Poderão alegar-se que elas se fincam no propósito ser recém-nascido, a quem espera uma vida certamente infernal, inútil, vergonhosa.
-         Mas quem sabe que será infernal? Onde está lá estabelecida uma escala para o inferno da vida?
-         Quem garante que será inútil a vida de um ser humano, lá porque o corpo é deformado?
-         Quem nos diz que no futuro teria motivos de envergonhar-se e não orgulhar-se esse que nasceu e a mãe, tresloucada de dor, matou, em  Liège?
-         Quem? A mãe, o médico, os juízes? Não, ninguém.

O Homem não pode ser juiz do Homem; muito menos pode dispor da sua vida. E isso não tem nada a ver com a idade. Ser vivo há minutos ou horas ou dias ou meses ou anos – é ser vivo. No entanto, quando uma criança já tem uma certa idade, o infanticídio parece que deixa de chamar-se eutanásia...
Quanto à miséria a que, muito provavelmente, o ser deformado fisicamente, será votado – os aleijadinhos a pedir esmola, a vender cautelas –, não devemos esquecer que os miseráveis deste mundo não são; via de regra, aleijados a que a luta contra a miséria não se faz nascer, mas em vida e quanto mais se viver e quantos mais vivermos para lutar !  Aí não mete o bico a eutanásia.