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domingo, 24 de março de 2019

CARTA AO GOUVÊA LEMOS (Por Eugênio Lisboa)




Esta carta que hoje me apetece escrever-lhe é, se não estou em erro, a segunda que lhe envio. A primeira escrevi-lha (mas não cheguei a publicá-la ou ela não chegou a publicar-se) aqui há uns bons anos atrás: era uma prosa cheia de uma argumentação miúda, com a qual tentava provar-lhe aquilo que até certo ponto os factos se encarregaram de mostrar que não tinha lá muita viabilidade de prova... Como discordávamos, acabámos por ficar amigos. Assim vai o mundo!
Mas hoje o caso é outro. Porque lhe escrevo? Para lhe ser franco, não sei bem se conseguirei encontrar, por enquanto, uma resposta que possa ir muito além de um caprichoso «porque me apetece!» O caso é que vou escrever-lhe. E é até possível que, neste inútil exercício de um diletantismo que me é saboroso, eu acabe por encontrar, com alguma nitidez, o contorno das razões que por enquanto se me impõem apenas sob a forma nebulosa de uma violenta vontade de lhe escrever.  Seja pois o que Deus quiser!
Dou ao diabo os escrúpulos que pudesse ter com a sua modéstia e aqui lhe vou dizer de frente o que até agora tenho andado a cochichar a alguns amigos comuns e sempre rigorosamente nas suas costas: Você é um jornalista de talento e, tanto para os que gostarão de o ouvir dizer, como para aqueles que vão gostar um pouco menos, como até para os que não vão gostar absolutamente nada, eu não hesitarei em lhe dizer que Você é não só o mais talentoso jornalista que tenho lido em jornais portugueses, como até um dos poucos que efectivamente honram essa profissão que o é tanto como qualquer outra. Mas esta opinião, que partilho de resto com vários amigos, não é ainda daquelas que tenho tido a preocupação de cochichar quando o apanho de costas voltadas. Se lha não dei já por estas palavras, tê-la-ei dado pouco mais ou menos nestes termos ou, em qualquer dos casos, não tire o cuidado expresso de lha não dar. Você não é mais vaidoso do que aquilo que é normal e até saudável ser-se e não ia portanto correr o risco de desintegrar-se só porque este seu modesto (mas malcriado) amigo é de opinião que Você, em matéria de jornalismo, é um «truta» dos antigos. O que eu nunca lhe disse a si mas me tenho fartado de andar a dizer aos amigos (e aos outros) é que o seu talento, por muito que seja, é o que, em si, menos me impressiona. Para lhe ser franco, Gouvêa Lemos, estou-me até borrifando para o seu talento (já lhe disse que era malcriado!). Gosto, é claro, dele, como gostam todos os que o reconhecem, preciso (precisamos!) dele para que V.M. seja o que tem sido, aborrecer-me-ia imenso que os serviços que ele tem prestado deixassem de estar disponíveis, mas que quere Você?, sou feito assim: o talento e a inteligência das pessoas são qualidades admiráveis mas não creio que sejam elas, em si, aquilo que torna as pessoas dignas de estima e admiração. Até porque as pessoas possuidoras de tais predicados «nada» fizeram para os ter: foi a Madre-Natura, generosa e propiciadora, quem lhos ofertou com maior ou menor dose de arbitrariedade. Você, Gouvéa Lemos, não tem afinal culpa nenhuma do talento que possui! Do que Você já poderia ser culpado, e muito, era de não o ter sabido até agora empregar! Tudo está na orientação que se dá a tão perigosos dotes... E é precisamente aqui que eu começo a entrar na zona do que até agora não tem passado de cochichos. É muito simples: queria dizer-lhe que Você, muito mais e muito melhor do que ser uma pessoa cheiíssima de talento (há-os para aí às dúzias, há até cada vez mais! ) é uma pessoa de carácter e é também um homem profundamente bom. Isto sim, estimo eu, que é uma dura aplicação e conquista de todos os dias, que exige uma luta sem quartel contra o que em nós convida à complacência e que põe à prova muito mais do que os talentos que o berço nos legou.
Você é forte, da força dos teimosos e dos íntegros, possui da honra um conceito muito antigo, um daqueles conceitos absolutistas e um pouco «farouches» que nós tínhamos quando éramos garotos e queriamos por força ser «sempre» os últimos a cuspir. Mas você, com tudo isto, é sobretudo um homem cheio de bonomia, de tolerância e de bondade. Você só é mau, rigorosamente, para si próprio... Ai, porém, de quem queira pisá-lo! Você tem arriscado a vida (a sua e a dos seus), tem feito mais do que arriscá-la: tem-na francamente comprometido! Você tem passado mal, um mal que não é eventual, mas contínuo, persistente, corrosivo, daqueles que deprimem e oprimem, e no entanto, Você tem sempre uma palavra boa e um ar de optimismo que crucificam o mais pintado. Você tem tido todas as razões (e mais urna)para há muito se ter rendido e, no entanto, mesmo já sem balas, Você ainda usa o bacamarte à laia de cacete. Voltando ao meu tempo de miúdo e pondo-me a lembrar um velho e esquecido filme do Orson Welles (chamava-se «Jornada de Pavor» e às vezes há razão para se ter pavor), Você tem frequentemente sido o pobre do Joseph Cotten, também bonzão e tolerantíssimo, encurralado num quarto no extremo do corredor de uns navio sinistro, rigorosamente sem saída, cercado por todos os lados (como as ilhas), sem armas, mas considerando muito a sério a possibilidade de salvação por via de um minúsculo canivete limpa-unhas! Confesse, Gouvêa Lemos, que era optimista e resistente o bom do Joseph Cotten! Teimosa raça de honestos que Vocés são! Embirrantes criaturas, chatíssimos trepadeiras, que despistam todos os cálculos daqueles para quem tudo é cálculo! É o que os desbarata — esbarrarem com algo que não tinha sido incluído nas previsões do orçamento: a honradez, a inteireza, as barbas do Vice-Rei! E ficam logrados...
Dizia o bom do Alexandre Dumas, Filho (regressámos à infância, lembra-se?, perdoe¬-me pois o pouco alevantado das citações...), dizia ele, o Alexandre Dumas, Filho, que «a honestidade é a maior de todas as malícias, porque é a única que os maliciosos não prevêem». Como é verdade! Que grande malandro, no meio de toda esta tristeza, Você acabou por me sair, ó Gouvêa Lemos! Alguns deles a contarem que Você fosse de se entregar e Você com aquele seu ar arrelampado, de olhos muito abertos e bigode murcho, a dizer na voz arrastada que a gente lhe conhece: «Eu lá disso de contas não sei nada! Eu até só sou teimoso!...»
Pois é verdade, sempre acabei por achar aquilo que lhe queria dizer. Era afinal tão simples: do que gosto, em si, é, sobretudo, da honestidade, da tolerância, da bondade e dessa tão embirrenta maneira de ser «malicioso»... Parece¬-lhe pouco?
Salvê, amigo velho! E até à próxima que há-de ser, se não estou em erro, no sábado, ao café, depois do almoço. Para nada em especial, apenas com o fim de, como diz uma boa amiga nossa, «discutirmos um assunto».

Seu,

EUGÉNIO LISBOA


VOZ DE MOÇAMBIQUE
13/9/1964

sábado, 23 de março de 2019

Lourenço Marques já foi uma cidade limpa




Desde tenra infância goza Lourenço Mar­ques da boa fama de cidade limpa. Boa e justa fama era essa, pois Lourenço Marques tinha, de facto, requintes de asseio, na sua parte mais visível e mais conhecida lá fora – a de cimento e asfalto.
Agora não. Há uns tempos a esta parte, vem a burguesa criatura a descuidar-se tanto de sua figura física, com tal desleixo na hi­giene, que parece outra. E já se mostram bem antigos os tempos em que o visitante chegava e dizia, na fatal entrevista: «Cidade bonita, cidade arrumadinha, cidade limpa». A gente sorria, enternecida, porque era verdade.
Nos dias que passam, ninguém pode referir-se com sinceridade o essa perdido faceta da risonha capital de Moçambique, onde, a meio das manhãs de sol, nada mais juncava o pavimento das ruas e dos passeios que não fossem as flores das acácias e dos jacarandás, dando aos repórteres o pretexto para a velha imagem das «ruas atapetadas, etc.».
Juncam hoje as ruas lixos diversos, esquecidos pelos carros de limpeza, desprezados pelos varredores. Tristes ficam os lixos todo o dia e vários dias, nas valetas, junto das árvores, às vezes acumulados em montículos com uma certa disciplina; muitas outras, caídos na mais vil anarquia, correndo loucamente por onde calha.
Oh, sim, Lourenço Marques já foi uma cidade limpa! Agora não. E, mesmo com o risco de levarem à conta de reaccionário saudosismo esta minha pretensão, atrevo-me a sugerir que o serviço municipal de limpeza abandone essas práticas modernas, talvez orientadas pelo nobre sentido de criar rápidamente na nossa berro amada cidade um certo «cachet» de velha cidade porca, ao estilo das mais célebres velhas cidades porcas dos mais velhos continentes, e que se retome a antiga fórmula de varrer muito bem varrido a capital, removendo escrupulosamente o lixo para a lixeira.
A limpeza não dá a felicidade mas ajuda muito.
Texto de
Gouvêa Lemos

Fotos de
José Amador

Voz de Moçambique – 4/4/1964