Esta carta que hoje me apetece escrever-lhe é, se não estou
em erro, a segunda que lhe envio. A primeira escrevi-lha (mas não cheguei a publicá-la
ou ela não chegou a publicar-se) aqui há uns bons anos atrás: era uma prosa
cheia de uma argumentação miúda, com a qual tentava provar-lhe aquilo que até
certo ponto os factos se encarregaram de mostrar que não tinha lá muita
viabilidade de prova... Como discordávamos, acabámos por ficar amigos. Assim
vai o mundo!
Mas hoje o caso é outro. Porque lhe escrevo? Para lhe ser
franco, não sei bem se conseguirei encontrar, por enquanto, uma resposta que
possa ir muito além de um caprichoso «porque me apetece!» O caso é que vou
escrever-lhe. E é até possível que, neste inútil exercício de um diletantismo
que me é saboroso, eu acabe por encontrar, com alguma nitidez, o contorno das
razões que por enquanto se me impõem apenas sob a forma nebulosa de uma violenta
vontade de lhe escrever. Seja pois o que
Deus quiser!
Dou ao diabo os escrúpulos que pudesse ter com a sua modéstia
e aqui lhe vou dizer de frente o que até agora tenho andado a cochichar a alguns
amigos comuns e sempre rigorosamente nas suas costas: Você é um jornalista de
talento e, tanto para os que gostarão de o ouvir dizer, como para aqueles que
vão gostar um pouco menos, como até para os que não vão gostar absolutamente
nada, eu não hesitarei em lhe dizer que Você é não só o mais talentoso
jornalista que tenho lido em jornais portugueses, como até um dos poucos que
efectivamente honram essa profissão que o é tanto como qualquer outra. Mas esta
opinião, que partilho de resto com vários amigos, não é ainda daquelas que tenho
tido a preocupação de cochichar quando o apanho de costas voltadas. Se lha não
dei já por estas palavras, tê-la-ei dado pouco mais ou menos nestes termos ou,
em qualquer dos casos, não tire o cuidado expresso de lha não dar. Você não é
mais vaidoso do que aquilo que é normal e até saudável ser-se e não ia portanto
correr o risco de desintegrar-se só porque este seu modesto (mas malcriado)
amigo é de opinião que Você, em matéria de jornalismo, é um «truta» dos
antigos. O que eu nunca lhe disse a si mas me tenho fartado de andar a dizer
aos amigos (e aos outros) é que o seu talento, por muito que seja, é o que, em
si, menos me impressiona. Para lhe ser franco, Gouvêa Lemos, estou-me até
borrifando para o seu talento (já lhe disse que era malcriado!). Gosto, é claro,
dele, como gostam todos os que o reconhecem, preciso (precisamos!) dele para
que V.M. seja o que tem sido, aborrecer-me-ia imenso que os serviços que ele
tem prestado deixassem de estar disponíveis, mas que quere Você?, sou feito
assim: o talento e a inteligência das pessoas são qualidades admiráveis mas não
creio que sejam elas, em si, aquilo que torna as pessoas dignas de estima e
admiração. Até porque as pessoas possuidoras de tais predicados «nada» fizeram
para os ter: foi a Madre-Natura, generosa e propiciadora, quem lhos ofertou com
maior ou menor dose de arbitrariedade. Você, Gouvéa Lemos, não tem afinal culpa
nenhuma do talento que possui! Do que Você já poderia ser culpado, e muito, era
de não o ter sabido até agora empregar! Tudo está na orientação que se dá a tão
perigosos dotes... E é precisamente aqui que eu começo a entrar na zona do que
até agora não tem passado de cochichos. É muito simples: queria dizer-lhe que
Você, muito mais e muito melhor do que ser uma pessoa cheiíssima de talento
(há-os para aí às dúzias, há até cada vez mais! ) é uma pessoa de carácter e é
também um homem profundamente bom. Isto sim, estimo eu, que é uma dura
aplicação e conquista de todos os dias, que exige uma luta sem quartel contra o
que em nós convida à complacência e que põe à prova muito mais do que os talentos
que o berço nos legou.
Você é forte, da força dos teimosos e dos íntegros, possui
da honra um conceito muito antigo, um daqueles conceitos absolutistas e um
pouco «farouches» que nós tínhamos quando éramos garotos e queriamos por força
ser «sempre» os últimos a cuspir. Mas você, com tudo isto, é sobretudo um homem
cheio de bonomia, de tolerância e de bondade. Você só é mau, rigorosamente,
para si próprio... Ai, porém, de quem queira pisá-lo! Você tem arriscado a vida
(a sua e a dos seus), tem feito mais do que arriscá-la: tem-na francamente
comprometido! Você tem passado mal, um mal que não é eventual, mas contínuo,
persistente, corrosivo, daqueles que deprimem e oprimem, e no entanto, Você tem
sempre uma palavra boa e um ar de optimismo que crucificam o mais pintado. Você
tem tido todas as razões (e mais urna)para há muito se ter rendido e, no
entanto, mesmo já sem balas, Você ainda usa o bacamarte à laia de cacete. Voltando
ao meu tempo de miúdo e pondo-me a lembrar um velho e esquecido filme do Orson
Welles (chamava-se «Jornada de Pavor» e às vezes há razão para se ter pavor),
Você tem frequentemente sido o pobre do Joseph Cotten, também bonzão e
tolerantíssimo, encurralado num quarto no extremo do corredor de uns navio
sinistro, rigorosamente sem saída, cercado por todos os lados (como as ilhas), sem
armas, mas considerando muito a sério a possibilidade de salvação por via de um
minúsculo canivete limpa-unhas! Confesse, Gouvêa Lemos, que era optimista e
resistente o bom do Joseph Cotten! Teimosa raça de honestos que Vocés são!
Embirrantes criaturas, chatíssimos trepadeiras, que despistam todos os cálculos
daqueles para quem tudo é cálculo! É o que os desbarata — esbarrarem com algo
que não tinha sido incluído nas previsões do orçamento: a honradez, a
inteireza, as barbas do Vice-Rei! E ficam logrados...
Dizia o bom do Alexandre Dumas, Filho (regressámos à
infância, lembra-se?, perdoe¬-me pois o pouco alevantado das citações...),
dizia ele, o Alexandre Dumas, Filho, que «a honestidade é a maior de todas as
malícias, porque é a única que os maliciosos não prevêem». Como é verdade! Que
grande malandro, no meio de toda esta tristeza, Você acabou por me sair, ó Gouvêa
Lemos! Alguns deles a contarem que Você fosse de se entregar e Você com aquele
seu ar arrelampado, de olhos muito abertos e bigode murcho, a dizer na voz
arrastada que a gente lhe conhece: «Eu lá disso de contas não sei nada! Eu até
só sou teimoso!...»
Pois é verdade, sempre acabei por achar aquilo que lhe
queria dizer. Era afinal tão simples: do que gosto, em si, é, sobretudo, da
honestidade, da tolerância, da bondade e dessa tão embirrenta maneira de ser
«malicioso»... Parece¬-lhe pouco?
Salvê, amigo velho! E até à próxima que há-de ser, se não
estou em erro, no sábado, ao café, depois do almoço. Para nada em especial,
apenas com o fim de, como diz uma boa amiga nossa, «discutirmos um assunto».
Seu,
EUGÉNIO LISBOA
VOZ DE MOÇAMBIQUE
13/9/1964