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Jornalista Gouvêa Lemos

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

"EXPLICAÇÃO "

Note-se a nota "EXPLICAÇÃO" no canto direito superior.

Estas mudanças em cima da hora, por artigos censurados, alimentavam a criatividade da equipe. A capa não podia ter ficado melhor e mais assertiva.

O poeta moçambicano Alberto Lacerda na V.M. de 15 de Março de 1963.


Nas releituras da “Voz de Moçambqiue” encontrei este texto que reproduz comentários e conceitos sobre poesia colocados pelo poeta Alberto Lacerda na aberura de uma leitura de poemas patrocinada pela Associação dos Naturais de Moçambique.

Achei pertinente dividir como mais gente, especialmente quando tenho amigos que mergulham na poesia, seja como poetas, seja como mantedores da poesia de quem já esteve entre nós, nos fazendo buscar na memória o que outrora já lemos, ou do que não havíamos lido ainda por relaxo ou por falta de oportunidade.

Zé Paulo G. Lemos

ACERCA DE POESIA

Por ALBERTO LACERDA

Quando da primeira leitura de poemas realizada entre nós por Alberto Lacerda, no Salão de Conferências da Câmara Municipal e sob o patrocínio da nossa Associação, proferiu o Poeta, à guiza de intróito, alguns comentários pertinentes acerca do fenómeno poético. Maugrado o carácter aparentemente ligeiro e necessariamente circunstancial de que se revestiram as palavras, a meia dúzia de conceitos cristalinos que deixou adivinhar e que hoje quase ninguém lembra a propósito de Poesia, pareceram-nos de tanta importância, que insistimos com o Poeta para que nos autorizasse a sua publicação. Esse o texto que oferecemos aos nossos leitores. — N. da. R.

Perguntaram um dia ao poeta Murilo Mendes, que é, como sabem, um católico sincero, se o inferno realmente existia. Murilo respondeu: «Existe mas não funciona». O mesmo se poderia ter quanto às artes poéticas, quanto às teorias da poesia. Existem, mas não funcionam. Felizmente. Há uma coisa, em poesia que funciona, e só uma: a poesia.

Não vou dissertar sobre poesia, sobre artes poéticas, correntes poéticas nem sobre poetas. Ficará isso provavelmente para outra ocasião. Hoje eu quis exclusivamente ler perante alguns amigos, amigos meus ou da poesia, poemas que eu amo, numa escolha possível entre centenas de outras escolhas. Na estrutura do meu programa há apenas um critério: poesia Todos os poemas que eu vou ler, escolhi-os porque os amo, porque os considero poesia.

Eu desejava apenas frizar uma coisa. A poesia necessita de uma atmosfera de liberdade absoluta a poesia desenvolve-se tão mais plenamente quanto mais a libertarem de espartilhos políticos, de coacções políticas da esquerda, da direita, do centro, de baixo, ou de cima. A poesia necessita que a libertem cada vez mais de etiquetas, de tabus, de calúnias de ordem estética ou pseudo-estética. É preciso acabar de uma vez para sempre com as guerras do Alecrim e da Manjerona. «Não leia Fulano porque Fulano é um esteta!» «Não leia Cicrano porque Cicrano não passa dum neo-realista!» São atitudes perniciosas, estreitas e que só desfocam a verdadeira perspectiva.

Ou ainda não se avaliou o espectáculo degradante de artistas da envergadura de um Shoetakovitch ou um Prokofief irem ao banco dos réus por não fazerem arte dirigida? Ou já nos esquecemos do espectáculo degradantíssimo da Alemanha Nazi em relação a tudo, incluindo a arte e os artistas?

Verifico com enorme alegria que em Moçambique se vai criando uma poesia com características locais, verifico com alegria ainda maior que não se acha reaccionário que nem toda a poesia que aqui se faz fale em temas especificamente locais. E símbolo disso a glória autentica de que o nome de Reinaldo Ferreira tão justamente goza entre nós.

A poesia é uma forma de criação artística: não é um substituto para a actividade política ou religiosa. Mas a actividade política ou religiosa também podem ser temas de poesia. Essa a grande vitória do modernismo, a ilimitação do mundo poético. Não caiamos portanto em Moçambique no perigo de se dizer: um poeta de Moçambique que não for intelectualmente um reaccionário e um traidor, só pode cantar a sanzala e a machamba. Ainda não se caiu nesse perigo, espero que nunca se venha a cair. Cantem-se os temas nativos se foram sentidos de dentro e não impostos. Mas não se esqueça nunca a complexidade da vida. A arte exige uma liberdade absoluta e exactamente por isso exige também uma sinceridade artística absoluta. Não há arte dirigida. Há artistas que apesar das coacções que se impuseram, ou que lhes impuseram os vários ditadores políticos e não políticos, foram criando autênticas obras de arte. Mas criaram-nas apesar dessas coacções. Ezra Pound, fascista confesso, tem ideias políticas infames e é no entanto um dos maiores poetas do século XX. Mas mais infames são aqueles que pretendem justificar as suas ideias políticas deles citando Ezra Pound. Disse Eira Ehrenbure uma vez que se faz arte que se pode, não a que se quer. Mas há uma obrigação de todo o artista: aprender uma técnica. A pobre da literatura — como lida com ferramentas de todos os dias, as palavras — presta-se a imensos equívocos. Assim como é preciso aprender a tocar piano para se escrever as sonatas de Beethoven ou os prelúdios de Chopin, é preciso aprender a escrever versos para que um certo encadeamento de palavras seja poesia. É preciso não enganar o público, é preciso que os críticos não ajudem a enganar o público, é preciso não cair no sofisma de apodar de esteta, na acepção decadente dos fins do século XX, aqueles artistas que resolvam os problemas formais da sua arte. Todos, absolutamente todos que nos encontramos nesta sala, a humanidade inteira, é artista, é criadora em certo sentido.

Mas é por motivos sobretudo formais, de oficina, de alegria física no fazer, que só uma minoria dentre nós vai além do vago desejo e chega à concretização que se chama poema, sonata, escultura, pintura. A técnica é importantíssima; é dever sagrado de todo o artista ir ao fundo da técnica, saber-lhe todos os segredos. Só assim ele serve a arte. Só assim ele serve o povo. E o povo não é uma entidade abstracta. O povo somos todos nós. O povo é a humanidade inteira, presente, passado e futuro.

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Histórias da imprensa moçambicana

Na década de 60 o jornalista Gouvêa Lemos foi colaborador, pela segunda vez, de “A Voz de Moçambique”.

O GL sempre teve como forte característica a defesa de uma imprensa honesta, e combativo com atitudes que entendesse serem desleais no meio do jornalismo.

Nos anos de 1963 e 1964 a imprensa de Lourenço Marques passou por mudanças estruturais e societárias. Uma delas foi a responsável pelo retorno do GL à “A voz de Moçambique” após a sua saída da “A Tribuna”, quando soube da possibilidade do Banco Nacional do Ultramar assumir o controle financeiro deste que foi com certeza uma das suas maiores realizações, que depois se transformou em frustração, que foi a sua colaboração importantíssima  na criação da “A Tribuna”. Sabia que a independência da Tribuna acabaria com o BNU como novo proprietário. E o que moveu o grupo de criadores desta que seria (foi) a pedra no charco da imprensa portuguesa além mar foi exatamente esse diferencial à grande maioria dos órgãos de imprensa de então.

Bem! Em cima dessas mudanças o GL escreveu uma crônica intitulada de “SARABANDA (OU MINUETE) Nos jornais de Lourenço Marques”. Isto foi na edição da VM de 30 de Agosto de 1964. No texto, entre outras coisas, ele comenta sobre o desmentido que um advogado conhecido em Lourenço Marques tentou forçar o jornal beirense “Diário de Noticias” publicar sobre a informação que haviam divulgado sobre este ter sido convidado, e havia recusado, para assumir a direção do “Notícias” da capital, que também passaria a ser controlado pelo BNU.

O dr. Ney Ferreira, o advogado que tinha passado esta informação a colegas sentado em uma das mesas do “Café Continental”,  amuou - lá devia ter os seus motivos e preocupações – e buscou pressionar, via o seu colega dr. Adrião Rodrigues, que a “VM” penalizasse a audácia de um jovem jornalista ao expô-lo ao desmentir o desmentido que não havia sido desmentido pelo “Dário de Notícias”.
Ao não ter sucesso sobre o castigo que sugeria ser aplicado ao GL, este senhor achou que para defender a sua honra perante os amigos deveria ir para as vias de facto, ou seja, para a agressão física.

Esta atitude que tomou, como também a exigência que a “VM” editasse a sua carta, só atiçou ainda mais a curiosidade sobre o que tanto temia o dr. Ney Ferreira sobre a informação que ele mesmo havia palreado na mesa de um café, sem manifestar que fosse tal informação confidencial.

A edição da “VM” de 13 de Setembro de 1964 deu bastante espaço ao episódio grotesco proporcionado por este senhor. Na primeira página vem a carta do dr. Ney Ferreira, com uma pequena introdução editorial do jornal que já deve ter o deixado um pouco mais tonto antes mesmo de acessar as outras páginas do semanário.  

Na pagina 4 tem a “Carta do Diretor”, escrita pelo Homero Branco, endereçada ao dr. Ney Ferreira. Ainda a pagina 4, que continua na pag. 11, o Adrião Rodrigues escreve um grande texto intitulado com grande ironia como “O QUE FAZ CORRER SAMMY?” Nele esclarece alguns factos do episódio e, claro, com total solidariedade ao GL.

Fechando a pág. 4 temos a primeira parte da extensa, mas deliciosa crónica do GL com o título “FOUCHÊ DE BITOLA ESTREITA”, onde apresenta a sua versão dos fatos. A crônica continua na pág. 8.

Nesta pág. 8 pode-se ler também a belíssima e doce crônica do amigo admirador Eugênio Lisboa intitulada “CARTA AO GOUVÊA LEMOS”.

Definitivamente o dr. Ney Ferreira deve ter percebido que as suas atitudes foram um murro muito mal dado. Murro que ele afinal não deu, ficou numas unhadas... mas que não precisou de desmentidos!

Zé Paulo G. Lemos
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Seguem as crônicas e cartas identificadas acima.

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SARABANDA (OU MINUETE?) nos jornais de Lourenço Marques

Por Gouvêa Lemos, em 30 de Agosto de 1964.

Em consequência da profunda alteração que se operou na constituição da sociedade anónima proprietária do jornal «Notícias», a que já nos referimos em edição anterior, vai verificar-se uma notável remodelação nos seus corpos gerentes. O mesmo se passará em «A Tribuna», como se deduz da convocatória para a sua assembleia geral, a realizar em 7 de Setembro próximo. Entretanto, no «Diário», foi demitido o seu Subdirector, que já seguiu para a Metrópole.

Esta movimentação nos diários de Lourenço Marques causa grande agitação no meio jornalístico local, onde circulam as mais desencontradas informações, dividindo-se as opiniões sobre se deve considerar-se tão grande troca de dirigentes uma espalhafatosa sarabanda ou um gracioso e discreto minuete. De qualquer modo, trata-se de coreografia com muitos figurantes, como vamos ver.

NOVA DIRECÇÃO NO «NOTÍCIAS»

A convite do Banco Nacional Ultramarino, tem estado em Lourenço Marques o jornalista Tomé Vieira, chefe da Redacção do «Diário de Notícias», de Lisboa, que veio tomar contacto com a organização do «Notícias», tendo sido já contratado para seu Director executivo. O sr. Tomé Vieira vai ainda a Lisboa e virá tomar conta do seu lugar em fins de Setembro próximo, depois da assembleia geral de accionistas já anunciada. Entretanto, sabe-se que o Capitão Manuel Vaz, antes de partir para a Europa, deixou escrito o seu pedido de demissão do cargo de Director do «Noticias», que fundou em 1926 e de que foi director e proprietário até há pouco, devendo ser substituído o seu nome no cabeçalho do jornal pelo do dr. António Mascarenhas Gaivão, presidente da Associação Comercial de Lourenço Marques.

Em relação ao cargo de Director do «Notícias», tem relativo interesse informar que o advogado do nosso foro, dr. Ney Ferreira, fez o «Diário de Moçambique» desmentir a notícia que aquele jornal da Beira publicou, segundo a qual teria sido convidado para desempenhar essas funções, quando, na verdade, ele próprio fizera saber a alguns colegas que fora abordado com esse fim. Por outro lado, recebemos informação de Luanda de que ali tinham sido feitos convites para o lugar de Subchefe da Redacção do «Notícias» de Lourenço Marques e o semanário ilustrado «Notícia», da capital angolana, afirma que o jornalista Adelino Tavares da Silva vem para Moçambique, ingressar na Redacção do «Notícias».

ADMINISTRAÇÃO REMODELADA EM «A TRIBUNA»

Quanto ao outro jornal financeiramente a cargo do Banco Nacional Ultramarino, «A Tribuna», depreende-se do texto da convocatória para a assembleia geral a realizar no dia 7 de Setembro próximo, que vão sair do Conselho de Administração, a seu pedido, os vogais eng. Palia de Lima e Margarido Fernandes (gerente da firma Jacques Salms), assim como vai ser substituído o Presidente do Conselho de Administração, João Correia dos Reis, que foi um dos fundadores do jornal. Consta, entretanto, com insistência, que deixará de ser director de «A Tribuna» o advogado dr. Frederico Mittermayer Madureira.

Por outro lado, também consta que haverá substituições na Redacção de «A Tribuna», embora não seja confirmada esta afirmação por qualquer facto concreto, conhecido, relativo a jornalistas convidados para ingressar nos seus quadros.

SURPRESA NO «DIÁRIO»

Foi recebida com surpresa a notícia de que o P.e Pinheiro, Sub-director do Diário», de Lourenço Marques, fora demitido subitamente do seu cargo e seguira já para a Metrópole, de avião. Não são conhecidos os motivos de tão surpreendente decisão, embora se lhe atribuam razões que não podem ser confirmadas. Para as mesmas funções foi já nomeado o P.e António Damasceno de Sousa. 


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A CARTA DO DR. NEY FERREIRA, 
Publicada na edição de 13 de Setembro de 1964.

"SARABANDA (OU MINUETE?) NOS JORNAIS DE LOURENÇO MARQUES?"

Recebemos a carta do sr. dr. Ney Ferreira, que a seguir publicamos. Como na parte final da sua carta, o sr. dr. Ney Ferreira faz exigências quanto à sua publicação que parecem derivar da invocação da Lei de Imprensa, embora tal invocação se não faça expressamente, decidimos inserir a carta na primeira página, visto ser isso o que estipula o parágrafo terceiro do art." 26: do Decreto i: 27 495 de 27/1/1937, e não no mesmo local (2.' página) em que fora publicada a notícia, causa desta carta, como pede o sr. dr. Ney Ferreira. Isto, independentemente de acharmos que o dr. Ney Ferreira não está nas condições que lhe permitiriam invocar o art.' 26..) do referido Decreto, visto o facto referido por V. M. não ser nem inverídico nem erróneo.


Exmo. Senhor Director de «A VOZ DE MOÇAMBIQUE — Associação dos Naturais de Moçambique —LOURENÇO MARQUES.

Exmo. Senhor,

O n. 144 do jornal que V. Exa. dirige publicou um escrito subordinado ao titulo «SARABANDA (OU MINUETE?) NOS JORNAIS DE LOURENÇO MARQUES», no qual o signatário é expressamente referido nos termos seguintes:

«Em relação ao cargo de Director do «Notícias» tem relativo interesse informar que o advogado do nosso foro, dr. Ney Ferreira, fez o «Diário de Moçambique» desmentir a notícia que aquele jornal da Beira publicou, segundo a qual teria sido convidado para desempenhar essas funções, quando, na verdade, ele próprio fizera saber a alguns colegas que fora abordado com esse fim».

O leitor comum do vosso jornal, ao ler este acintoso período da prosa do vosso colunista, ficará pura e simplesmente com esta ideia: que o signatário desmentira, descarada e públicamente, uma noticia verídica.

Tão manifesto propósito — cuja motivação é para mim um mistério—obriga-me a esclarecer este assunto que, dada a modéstia da minha vida, não sei em que termos possa constituir «notícia» para os leitores do jornal de V. Exa.

 Ora o que existe de verdade em todo este caso da direcção do jornal «Notícias» relativamente ao signatário resume-se no seguinte:

Em conversa informal, há já uns meses, alguém, sem quaisquer responsabilidades actuais no «Noticias», perguntou ao signatário se estaria interessado na direcção do referido jornal. Quem formulou a questão perante o signatária lá teria as suas razões para o fazer; e eu também tive as minhas para dizer que, não sendo jornalista nem por profissão nem por diletantismo, a hipótese me não interessava. Foi tudo.

Mas como o signatário foi colega, no Liceu e na Faculdade de Direito, de um grupa de advogados desta cidade e mantém relações de amizade com todos eles, em conversa meramente particular, entre amigos — e com a confiança e à vontade que a situação implica e justifica — narrou-lhes o facto, sem aliás referir pormenores.

Meses depois, surge no «Diário de Moçambique» uma local dando-se eco de que o signatário teria recusado o lugar de director do «Noticias». Ora é evidente que, no seu conteúdo concreto, uma informação destas não tem senão uma ténue ligação com a realidade: esta desvirtualiza-se num boato. Por isso o «Diário de Moçambique» não teve qualquer relutância em corrigir a sua local, inserindo a informação verídica que o signatário lhe enviou: que não recusara um lugar para o qual não fora sequer convidado. Note-se que o signatário nem pediu ao «Diário de Moçambique» que publicasse um desmentido: limitou-se a referir a verdade, em carta dirigida ao chefe da Delegação local desse conceituado jornal — e tanto bastou para que a correção surgisse, espontânea e leal.

Pareceria que o caso estava arrumado; e estaria, se não entrasse em cena o sr. Gouveia Lemos, que me dizem ser chefe de redacção do jornal de V. Exa., e tem a paternidade do inocente artigo cujo titulo vacila entre a sarabanda e o minuete.

Em rodopio de sarabanda ou em voltas de minuete, esse jornalista procurou o sr. dr. Adrião Rodrigues em sua casa — é visita e parece que amigo deste douto causídico — e pretendeu saber dele se eu teria ou não recusado o tal lugar. O sr. dr. Adrião Rodrigues ter-lhe-ia dito o que de mim ouvira e era o que deixei referido; garante-me o sr. dr. Adrião Rodrigues que não suspeitou sequer do fim publicitário para o qual o nosso homem bebia, no seio duma casa amiga, essa inconfidência. E eu acredito na palavra do sr. dr. Adrião Rodrigues.

Foi assim. que a confiada conversa que tive com amigos chegou, sabiamente deturpada, aos leitores de V. Exa., pela pena do sr. Gouveia Lemos...

Abstenho-me de classificar moralmente as vertigens desta sarabanda. Todas as profissões têm o seu mínimo ético; e isto de entrar na casa de cada um para, em conversa amena, subtrair uma «caixa» jornalística parece-me que não pode caber na deontologia de jornalismo algum!

Dizia Mestre Aquilino que a língua tem as suas leprosarias. As atitudes também! Solicitando a publicação desta carta no mesmo local e sob o mesmo titulo do escrito a que diz respeito sou,

De V. Exa.,

       Mt. Atentamente,

           NEY FERREIRA 

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CARTA DO DIRECTOR

Exmo. Senhor

Dr. Ney Ferreira

A sua carta vem publicada neste número conforme pede e creia que não seria necessário recorrer à Lei da Imprensa para esse efeito.

O artigo a que V. Ex..' se refere tanto poderia ter sido escrito pelo sr. Gouvêa Lemos como por qualquer outra pessoa, e como não veio assinado tornar-se ia difícil identificar o autor. Nos artigos não assinados a responsabilidade cabe muito especialmente ao Director. E digo muito especialmente pois que pelos outros artigos também, é por vezes, responsabilizado.

Devo esclarecer que até à data da notícia em questão, não tinha ouvido falar de V. Ex.ª. Li o seu nome pela primeira vez nessa altura, voltei a lê-lo na sua carta e a partir de certa noite (a da agressão ao sr. Gouvêa Lemos), tenho ouvido várias referências a seu respeito.

Se me alongo mais nesta carta, faço-o apenas por não poder deixar de me referir aos acontecimentos posteriores à referida notícia.


V. Ex.ª, ao agredir o nosso Chefe da Redacção, agrediu todos nós, atingindo também os jornalistas que, por profissão, procuram informar o público. Francamente! Já não bastam as inibições a que estamos sujeitos, as pressões que alguns têm que suportar com muita contrariedade, mas ainda havíamos de estar agora arriscados a uma agressão por parte de alguém que leu alguma coisa de que não gostou!

 É muito !...

Acredite que não quero pregar moral, mas gostaria que cada um fosse capaz de tomar a responsabilidade dos seus próprios actos. Quero que saiba que sigo e defendo este princípio.

Alguém lhe disse o nome da pessoa que escreveu o artigo. Foi alguém que confiou e não devia ter confiado em V. Ex.ª. Se V. Ex." me tivesse escrito, ou dirigido pessoalmente, fazendo-me a pergunta que provavelmente fez a outrem, creia que não lhe responderia, pois considero esse um dos deveres de um Director de jornal.

Não faço mais comentários. Deixo-os para os outros.

HOMERO BRANCO

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"O QUE FAZ CORRER SAMMY ?"

Por Dr. Adrião Rodrigues , em 13 de Setembro de 1964.

Veio o Dr. Ney Ferreira chamar-me à liça na carta que em má hora dirigiu a V. M.. Como as afirmações do Dr. Ney Ferreira necessitam esclarecimento, vejo-me obrigado a também eu repor as coisas no seu devido pé.

Antes de entrar propriamente na análise daquilo que a mim se refere na carta do Dr. Ney Ferreira, quero pôr a claro 3 pontos:

a) Quando o Sr. Dr. Ney Ferreira escreve que não é jornalista nem por profissão nem por diletantismo, quer evidentemente incluir entre os jornalistas «diletantes» a minha modesta pessoa. Mais adiante explicarei porque sou um jornalista diletante. Mas quanto ao Dr. Ney Ferreira cumpre esclarecer que é ele próprio proprietário de uma revista, o que desde logo o coloca em posição de não ser «desinteressado» das coisas que com a imprensa se relacionam.

b) Quando em linguagem de foro se exageram os adjectivos aplicados ao colega, isso muitas vezes não é mais que a tradução da ironia acerca de quem se fala. A expressão «douto causídico» que, a despropósito, o Dr. Ney Ferreira me aplica, pode não ter outro significado.

c) O Dr. Ney Ferreira não é, actualmente e ao contrário do que se possa deduzir da sua carta, meu amigo. Ele próprio, no dia 31 de Agosto, pelo telefone, cortou relações comigo.

Esclarecidos estes três factos, vamos tratar agora do que se passou em relação à local da V.M. que originou tão despropositadas razões do Dr. Ney Ferreira, naquilo em que tenho algum conhecimento e alguma responsabilidade.

 1 — Quando há cerca de dois meses o Dr. Ney Ferreira anunciou a um grupo de conhecidos que tinha sido abordado para Director do «Notícias» e que tinha recusado, não pediu a ninguém segredo da novidade. Todos cumprimentaram muito o Dr. Ney Ferreira, quer pela abordagem, quer pela recusa, e o Dr. Ney Ferreira subiu na consideração geral alguns furos. Ninguém, estou certo, pensou que divulgando uma tal notícia prejudicasse fosse no que fosse o Dr. Ney Ferreira. Antes pelo contrário, da divulgação dela, iniciada pelo Dr. Ney Ferreira, só poderia resultar prestígio para ele próprio. Como sou amigo do jornalista Gouvêa Lemos, e como colaboro no jornal de que ele é chefe de redacção, dei-lhe a notícia. Todavia Gouvêa Lemos não a publicou e a notícia saiu no «Diário de Moçambique». O Dr. Ney Ferreira desmentiu-a. E Gouvêa Lemos, ao escrever «Sarabanda ou Minuete nos jornais de Lourenço Marques» publicou as duas linhas, nas quais se referia ao acto e dizia que o Dr. Ney Ferreira tinha afirmado a um grupo de colegas que fora abordado para Director do «Notícias».

 Foi precisamente cerca de uma semana antes desta notícia, suponho eu que quando soube do desmentido do Dr, Ney Ferreira, que Gouvêa Lemos me perguntou, e a outro colega cujo nome não vem ao caso, se era ou não verdade que fora o próprio Dr. Ney Ferreira a noticiar a «abordagem». Nessa altura não me disse, nem provavelmente fez a pergunta com essa intenção já formada, que ía publicar a informação, que aliás já possuía há mais de um mês.

No dia 31 de Agosto, pelas 18 horas, fui surpreendido por um telefonema exaltado do Dr. Ney Ferreira, no qual me perguntava em tons mais que desabridos se eu não tomava uma atitude contra o jornalista Gouvêa Lemos, atitude que deveria ter o carácter de qualquer medida disciplinar dentro de «A Voz de Moçambique».

Porque não gosto que me falem desabridamente e porque o Dr. Ney Ferreira carecia de toda e qualquer razão, fiz-lhe ver que em primeiro lugar não ocupo lugar na «Voz de Moçambique» que permitisse tomar qualquer ato contra o jornalista Gouvêa Lemos, e ainda que ocupasse, não faria, porque Gouvêa Lemos dissera a pura verdade e só um espírito prepotente poderia imaginar que eu iria tornar uma posição contra um jornalista que muito considero corno homem digno que é, só porque tinha dito a verdade. Disse-lhe mais que não lera a local antes de o jornal sair, e que não sabia sequer que nela parecer uma referência ao Dr. Ney Ferreira. Isto não queria dizer que não desse inteira razão ao jornalista Gouvêa Lemos, ao tomar aquela atitude. Queria apenas dizer que eu não tinha lido préviamente a local — e mais nada, o que era pura verdade. Como eu me recusasse a tomar qualquer atitude contra o jornalista Gouvêa Lemos, o Dr. Ney Ferreira disse-me que cortava relações comigo, ao que lhe respondi que tinha muita pena. E o incidente ficou por ali. Nessa noite estive presente a um jantar a que também foi o Dr. Ney Ferreira. Como a conversa da tarde tinha decorrido em tom exaltado, procurei o Dr. Ney Ferreira para lhe perguntar se não queria conversar mais calmamente, Mais uma vez o Dr. Ney Ferreira afirmou que as nossas relações estavam cortadas.

2- Estes os factos! Eles merecem comentários. Procurarei ser rápido e sereno. O jornalista Gouvêa Lemos publicou a referência por razões que ele próprio explica neste mesmo jornal, e que só servem para demonstrar a dignidade com que ele encara a sua profissão de jornalista. Os jornais devem respeito a si próprios e aos leitores, e não se pode permitir que seja quem for se ache no direito de desmentir uma notícia que é verdadeira, que tem interesse e que aliás nenhum prejuízo evidente podia causar. Quem desmente a verdade, sujeita-se a ser desmentido. Ora o Dr. Ney Terreira afirmou que fora «abordado» para o cargo de Director do «Notícias», e recusara. Como próprio diz na carta (1) não referiu pormenores, isto é, não disseque quem o convidara não tinha responsabilidades actuais no «Notícias» e que a conversa fora informal. E a verdade é que  conversa teve lugar numa altura em que se falava na substituição de todo o corpo directivo do «Notícias.

Mas se algum esclarecimento tinha a prestar, porque não o fez, em vez de pretender que se admoestasse Gouvêa Lemos, ou de cortar relações comigo porque me não prestei a um tal papel, ou de agredir vergonhosamente um homem acerca do qual ele tinha sido avisado de que sofria de uma doença  perigosa?

Ainda pergunta o Dr. Ney Ferreira qual a motivação da referência que a V.M. lhe fez? Não seria mais justo e pertinente que  fôssemos nós a perguntar qual a motivação da sua tão estranha atitude?

Talvez quisesse subentender que a V.M. anda a fazer o jogo de certos círculos clericais. Será isso? Como anda o Dr. Ney Ferreira longe da verdade, que é a única coisa que pretendemos na V.M.!

3—Faz questão o Dr. Ney Ferreira de me meter pessoalmente à baila na sua carta. Preocupa-se demasiado comigo, como pessoa que deu a notícia a Gouvêa Lemos.

Seria decerto modo desculpável, não fosse ter o «Diário de Moçambique» publicado primeiro que a V.M. a notícia. E alguém, das pessoas que ouviram a conversa do Dr. Ney Ferreira no café, deu a noticia ao «Diário de Moçambique». Isso aliás só vem apoiar os factos de que o Dr. Ney Ferreira não pediu segredo, como de que toda a gente ficou convencida que a divulgação da notícia só podia prestigiar e não prejudicar o Dr. Ney Ferreira. Quem deu a notícia ao «Diário de Moçambique» fê-lo na mesma boa-fé de intenções com que eu dei a notícia ao jornalista Gouvêa Lemos. E ambas acabaram por ter publicidade.

Ora é estranho que só comigo Dr. Ney Ferreira se tivesse preocupado. Que só com a minha casa, com o meu bom nome, se preocupasse. Qual a estranha motivação que ria levado o Dr. Ney Ferreira trazer o meu nome à baila?

 4—Também me não parece muito curial que o Dr. Ney Ferreira diga que «meses depois» o «Diário de Moçambique» publicou a local, quando pouco mais de um mês tinha passado. E que diga que o «Diário de Moçambique» não teve relutância em corrigir a local, quando aquele jornal se limitou a publicar o desmentido do Dr. Ney Ferreira, o que não queria necessariamente dizer que o jornal se desmentia. São coisas totalmente diferentes.

Mas se o Dr. Ney Ferreira tinha sido tão bem sucedido com o primeiro desmentido, porque não ensaiou um segundo, em vez de recorrer aos processos violentos, e que afinal se revelaram, fisicamente, ser de dois gumes? Se a razão pertencesse ao mais forte, seria o Cassius Clay o campeão da razão. Mas ele só é campeão de pesados.

5 —Depois de tudo isto diz o Dr. Ney Ferreira, citando Aquilino, mestre de muitos que lhe não aprenderam a lição, que a língua tem as suas leprosarias. E as atitudes também. Como tem razão o Dr. Ney Ferreira!

6—Ficou para o fim a referência ínvia mas bem notória, ao meu (e de outros provavelmente) diletantismo jornalístico. Saiba o Dr. Ney Ferreira que eu entendo que como cidadão de um país devo dar o meu contributo — gratuito — a actividades que penso serem úteis à sociedade em que vivo. Orgulho-me assim de ter, com um grupo de boas vontades tão desinteressadas como a minha, pertencido à Direcção de um Cine-Clube que herdámos moribundo e, à custa de muito esforço, transferimos viável aos que depois receberam o testemunho: orgulho-me de. Honestamente ter cometido erros à frente da Direcção de uma Associação de Patinagem e, com outras boas vontades iguais à minha, termos deficientemente organizado o primeiro Torneio Internacional de Hóquei em Patins; orgulho-me de ajudar hoje a fazer um semanário como V.M., que considero das coisas mais importantes que aconteceram em Moçambique. E orgulho-me de mil e uma pequenas actividades que me apresto a exercer diletantemente. Orgulho-me de dar a minha quota-parte de dedicação as actividades que julgo interessarem à terra em que vivo e que amo. Orgulho-me disso.

Evidentemente que todos aqueles que vêem no estipêndio ou na glória, a única causa pela qual o homem pode trabalhar me chamarão parvo, por isto. Mas o que ninguém pode perguntar é «What makes Sammy Run?». Por isso sou diletante, em muitas coisas, e no bom sentido do termo. Mas não sou o único, graças a Deus! Nem sequer sou um de entre poucos! E no fim de contas que tem o Dr. Ney Ferreira com isso? Continue a correr e deixe os outros. O que lhe desejo é que chegue a qualquer parte.

ADRIÃO RODRIGUES 

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UM FOUCHÉ DE BITOLA ESTREITA

Por GOUVÉA LEMOS

Venho, senhores leitores, contar-vos hoje a verdadeira história do «caso Ney Ferreira» de que já deveis ter ouvido falar ou lido alguma coisa na Imprensa diária. E venho contá-la, meus senhores, porque, sendo embora uma lamentável história, é edificante e, maugrado os seus aspectos vergonhosos, contém alguma utilidade. Doutro modo não se justificaria o espaço que vou gastar deste precioso jornal que tanto estimo, com um sujeito nada invulgar ou notável. De facto, à personalidade do Dr. Ney Ferreira, advogado desta comarca, falta, para ser tema jornalístico, algum aspecto saliente, e se não fosse este seu vezo recente de provocar desordens em mictórios públicos, nunca eu daria conta de que ele se mexia por aí, nesta Lourenço Marques de tantas e várias gentes, a toupeirar os túneis da sua ambição, sofrendo os rancores dum fatalismo cruel que lhe deu mais desejos que forças — para a sofreguidão duma súbita ascenção na economia e na sociedade as artes mesquinhas dum Fouché de bitola estreita, para sonhos de Rockefeller talentos de mascate, para fumaças de Cassius Clay a disponibilidade dum «pushing ball».

Antes de encetar a narrativa a que me obrigam as trapaças do dr. Ney Ferreira, de «stock» renovado na carta que se publica na 1.' página, quero manifestar a minha gratidão aos jornais, aos colegas, aos amigos e pessoas desconhecidas que me afirmaram a sua solidariedade na atitude que assumi neste caso e expressaram a indignação geral provocada pelo procedimento do sujeito em questão. Dizem-me, é certo, que um ou dois brâmanes preocupados andaram a exprimir o seu conspícuo receio de que esta ópera bufa, escrita, montada e cantada (como adiante se verá) pelo Dr. Ney Ferreira o vá possivelmente prejudicar em alevantadas conveniências ao nível dos conselhos de administração; não me consta, porém, que os mesmos condoídos cidadãos se tenham preocupado um segundo sequer com os bem prováveis prejuízos, ao nível do pão da manhã para a mulher e para os filhos, que eu poderia sofrer mais uma vez, a realizarem-se as vontades do tal Dr. Ney Ferreira. só porque me recuso sempre a ceder um milímetro que seja no que respeita à minha dignidade profissional. Nem lhes levo isso a mal. Eles lá devem ter a sua coerência muito privada. Findo este nariz-de-cera indispensável, passemos à reportagem.

NO PRINCIPIO ERA A PROSÁPIA

Ainda não passaram dois meses (não «há já uns meses») desde que o dr. José Carlos Ney Ferreira afirmou num Café da «baixa», em dois dias seguidos e diante de quem quis ouvir, sem pedir segredo a nenhuma das pessoas presentes nem dar à revelação o tom de confidencia, que tinha sido convidado (ou abordado, como ele prefere agora que se diga) para ocupar o cargo de director do «Notícias» e recusou o convite. Já era do conhecimento publico a transacção de que fora objecto aquele jornal e admitia-se, em consequência, a proximidade de alterações na sua Direcção, na sua Administração e nos seus Corpos Gerentes dum modo geral.

Em face daquela afirmação, aliás repetida, do Dr. Ney Ferrei-ra, à mesa do Café, podem admitír-se duas hipóteses: ou ninguém o convidara para director do «Notícias» e ele entregou-se à vaidadezinha indecorosa de mentirosa prosápia; ou alguém o convidara, de facto, e ele cedeu à vaidadezinha pífia duma leviana prosápia. E digo leviana, pois que, pelo visto, a divulgação do que ele badalou, ufano, em lugar público, tinha tão graves implicações...

Na segunda-feira imediatamente seguinte, durante a reunião semanal de colaboradores de «A Voz de Moçambique», falou-se daquela informação, referindo-se alguém em termos elogiosos à recusa do Dr. Ney Ferreira e foi sugerido que se publicasse unia noticia sobre o assunto. Eu, jornalista profissional ao serviço deste semanário como seu Chefe de Redacção, opinei que a notícia não teria grande interesse, pois se ele recusara não ia ser o novo Director do «Notícias» e acrescentei que a revelação do nome de quem Viesse a ser o Director do importante diário, isso sim, havia de ser uma notícia de interesse. E não se falou mais do assunto. Até aqui, portanto, só houve prosápias do Dr. Ney Ferreira e nada de notícias.

COMEÇA O JOGO DAS MENTIRAS

Semanas depois (e não «meses depois»), precisamente no dia 18 de Agosto p.p., publica o «Diário de Moçambique» (jornal para que não trabalho — convém esclarecer — há meses) a notícia que transcrevo:

«O DR. NEY FERREIRA NAO ACEITOU O LUGAR DE DIRECTOR DO «NOTICIAS»

LOURENÇO MARQUES, 17 (da nossa Delegação, Via telegráfica) — Sabe-se nos meios ligados à Informação que o Dr. Ney Ferreira, advogado do Entreposto Comercial de Moçambique, não aceitou o convite que lhe foi dirigido para ocupar o lugar do director do «Notícias», em substituição do capitão Manuel Vaz, que pediu a demissão do cargo».

Alvoroçado, iniciou então o dr, Ney Ferreira a sua ofensiva «pró--desmentido» (a primeira) exigindo do Diário de Moçambique, com insistência, por telefone e pessoalmente, que aquele jornal desse o dito por não dito. Não acedeu o «Diário de Moçambique» às suas exigências mil aos seus rogos, pois tinha a certeza do que noticiara, por lhe vir a informação de fonte absolutamente fidedigna. Mas concordou em encontrar uma plataforma: o dr. Ney Ferreira escreveria uma carta a desmentir a noticia e o «Diário de Moçambique» transmitiria aos seus leitores o que essa carta dissesse. Foi assim que o Diário de Moçambique publicou no dia 22 de Agosto p.p. a seguinte local:

«O DR. NEY FERREIRA E O «NOTICIAS»

LOURENÇO MARQUES, 21 (da nossa Delegação) — A propósito da local «o dr. Ney Fer-reira não aceitou o lugar de director do «Notícias», publicada na nossa edição de 18, recebemos do dr. Ney Ferreira uma carta em que afirma não ter recusado o lugar por não ter sido convidado a exercê-lo, não obstante o que possa constar nos meios ligados à Informação».

Repare-se em que o «Diário de Moçambique» nem se desmente. Deixa essa responsabilidade ao Dr. Ney Ferreira e confia em que os lúcidos leitores julguem por si — o que corresponde a um processo jornalístico perfeitamente correcto.

«Note-se que o signatário nem pediu ao «Diário de Moçambique» que publicasse um desmentido: limitou-se a referir a verdade (qual verdade? a da carta para o «Diário de Moçambique» ou a da carta para «A Voz de Moçambique»?) em carta dirigida ao chefe da Delegação local desse conceituado jornal — e tanto bastou para que a correcção surgisse, espontânea e leal», Isto diz na sua carta publicada na 1.a página o Dr. Ney Ferreira. Não deve ser preciso classificar isto, nem falar em leprosarias...

Neste capítulo, fico-me por aqui, embora houvesse mais que contar; mas devemos poupar quem nem sonha ter o seu nome envolvido neste imbróglio, pelo Dr. Ney Ferreira.

Está, portanto, bem esclarecido que o «Diário de Moçambique» não se atrelou a este chorrilho de falsidades e prepotências do senhor de quem vos falo.

ONDE APARECE O HUMILDE ESCRIBA

Bem me custa voltar a falar de mim, mas tem de ser, para completo esclarecimento do tribunal da opinião pública, o único a que me acolho neste caso, tendo no entanto razões para me socorrer da Justiça oficial. Acontece que eu prezo muito esta minha profissão, de que exclusivamente vivo, e tanto a respeito que, para além dos reduzidos e inconstantes proventos que dela fruo, diariamente me preocupo com a sua valorização, sofro com os seus desaires, solidarizo-me com os meus colegas quando os sei humilhados por serem rectos e eficientes e revolto-me com as limitações, frustrações e dificuldades que sofre a nossa Imprensa. Impulsionado por esta minha pecha que parece incurável, frequentemente actuo com prejuízo imediato ou longínquo dos meus interesses, entrando em desacordo aberto com quem quer que seja responsável por injustas imposições a jornais ou jornalistas — e são disso testemunhas todos os meus colegas desta cidade, com quem já trabalhei no mesmo jornal.

Ora, precisamente um dos tipos de coacção mais vulgares, que  sempre me revoltou vivamente, " é o adveniente das conveniências económicas ou sociais e dos prestiglos balofos dos senhores muito importantes, para cujo clube o dr. Ney Ferreira anda a meter a proposta. São esses os tais que entendem estarem os jornais às suas ordens para publicarem tudo e só o que eles querem e se é certo que exultam sempre que lêem na Imprensa qualquer ataque a um desconhecido ou — melhor ainda — a um seu inimigo (que pode ser o dono da loja que lhes faz concorrência), pelo contrário ficam apopléticos de furor se um jornal se ocupa deles sem ser para os louvar muito. Devo aqui confessar que esses sujeitos me fazem mal aos nervos.

Por isso a mesma afirmação do r. Ney Ferreira que, ao principio nada me interessara e nem considerei motivo de notícia, depois do que se passou com o «Diário de Moçambique», ganhou para mim um interesse de outra ordem: apetecia-me desmascarar a insensatez dum pedante, só porque este demonstrava não ter em conta o prestígio dum órgão de Informação que não deve estar a desmentir-se perante os seus leitores como quem faz razuras em cartas para a família, nem o brio profissional do jornalista do «Diário de Moçambique». que devia ser posto em cheque perante a Direcção do seu jornal, só porque o dr. Ney Ferreira estava aflito com o resultado das suas prosápias de Café.

Assim foi que tive primeiro o cuidado de confirmar o que o dr. Ney Ferreira havia afirmado (nunca escrevo nada de ânimo leve e por isso não rectifico nunca o que escrevo, ao sabor do ânimo leve dos outros); e para o confirmar não violei o sigilo nem o decoro do lar do dr. Adrião Robrigues para lhe perguntar se o dr. Ney Ferreira «teria ou não recusado o tal lugar». Somente durante uma conversa sobre as remodelações em processo nos jornais «Noticias» e «A Tribuna». para satisfação dos meus próprios escrúpulos, procurei saber do Adrião Rodrigues e de outro seu colega que se encontrava presente se o dr. Ney Ferreira afirmara exactamente que tinha sido convidado (ou abordado) para desempenhar o lugar de director do «Notícias» e que recusara. Aqueles senhores, que são pessoas sérias e não costumam desmentir-se a si próprios nos jornais, responderam afirmativamente: e eu não expliquei os motivos por que fizera a pergunta pois isso não viria a propósito, visto não estarmos a falar do meu trabalho na V. M. e sim do que estava a passar-se nas empresas de dois jornais diários desta cidade.

Na carta do dr. Ney Ferreira é esta coisa tão simples e tão clara deturpada malevolamente pelo dito homenzinho, para me pôr na posição de indivíduo indigno da confiança e da amizade de pessoas que me recebem em sua casa e que me honram tanto mais com a estima que me concedem, quanto é certo estarem moralmente co'ocadas muito acima deste nível a que me faz descer o tratamento do indecente «caso Ney».

Agora, manda a verdade que se esclareça um ponto aparentemente desimportante desta balbúrdia provinciana: —Eu tencionava ou não, ao buscar uma confirmação do que o dr, Ney Ferreira afirmara, publicar um esclarecimento para repor em pé a verdade por ele derrubada? — Tencionava. pois!

Suponho que deixei acima bem enunciado o contexto em que se insere lógicamente essa minha atitude. Escrevi conscienciosamente aquele parágrafo, afinal tão explosivo, que voltaria a escrever hoje nos mesmos termos e que continuo a manter com todas as responsabilidades que me couberem — inclusivamente a física. Aliás, foi redigido com as melhores intenções: a obediência à verdade, o respeito da opinião pública e o apoio a um jornal em posição justa. É isto mesmo que o dr. Ney Ferreira deve classificar de más intenções...

De resto, o único erro que ele cometeu foi atribuir-me o valor de zero nesta sua equação, em que o resultado haveria de afectar alguém sem ser o modesto escriba também cioso dos seus princípios e dos seus legítimos brios.

NO REINO DE PAUL DE KOCK

Passou então o nosso personagem a ser personagem de Paul de Kock. O regime da contenda, que já não era de grande apuramento ético, abandalhou-se de todo e o dr. Ney Ferreira começou a desintegrar-se a olhos vistos. Primeiro experimentou gritar pelos telefones aos colegas que ele julgara poderem prejudicar-me o meu emprego, exigindo punição para o atrevido jornalista (depois do que seria mais fácil conseguir um desmentido para o desmentido do desmentido ...); enfurecido pela resistência honesta desses colegas que não colaboraram na sua maquinação, desatou a cortar relações; verificando a inutilidade do processo para conseguir os seus intentos, experimentou anunciar a toda a cidade que andava à minha procura para me bater, contando talvez que eu entretanto me assustasse, e desmentisse o meu desmentido ao desmentido dele... Por fim, aconteceu mesmo que, uma noite, no Café Continental, ele me viu passar junto de si e viu também (o que foi decisivo, que as outras pessoas presentes e suas conhecidas tinham visto que ele me vira. Essas pessoas presentes sabiam das suas ameaças; tinha de ser. Explicou que ia dar-me uns tabefes e foi provocar-me ,trémulo e lívido, aos miectórios. Combinámos, lá dentro, que viríamos discutir cá fora e saiu na minha frente. Arrependeu-se entretanto daquele pacto d cavalheiros, certamente por começar a admitir que as coisas não iriam decorrer conforme o seu programa optimista e, que, portanto, havendo testemunhas, não vingaria a sua versão preparada de harmonia com os anúncios. Voltou, pois, atrás, para me dar unhadas e levar murros. Parecendo-me que ele regressarar, ainda assim, à sua mesa, com muita petulância, depois de termos sido separados por um soldado e um empregado do Café, entendi que devia submetê-lo a uma contraprova com presença do público, para fins jornalísticos. O que se passou a seguir a isto foi muito humilhante para o dr. Ney Ferreira e tanto o foi que eu não me sentiria bem a escrevê-lo. Pare aqui na reportagem, já que somente devo referir e esclarecer o que foi da responsabilidade dele ou da minha.

MORAL DA HISTÓRIA

Escrevi inicialmente que esta história era edificante e continha alguma utilidade, Vê-se porquê.

 Primeiro: é feio mentir, aprende-se em criança, e mais feio se torna, ainda, quando alguém mente para se cobrir de falsa glória. Pode-se com isso, destravar um fatídico maquinismo, que leva à vergonha. Por outras palavras, quem não quer ser lobo não lhe veste a pele.

Segundo: todas as profissões igualmente respeitáveis desde que desempenhadas com igual dignidade e os jornalistas não são «valets de chambre» dos poderosos ou para-poderosos.

Terceiro: a Imprensa existe para servir os superiores interesses da colectividade e não os íntimos desígnios dos indivíduos; a informação e a orientação da opinião pública não podem estar à mercê das conveniências ou dos caprichos, das gracinhas ou dos receios de qualquer insensato.

***

Peço que me perdoeis, senhores leitores, o tempo que vos fiz perder e o espaço que vos roubei d esta cada vez mais necessária «A Voz de Moçambique».

ANTÔNIO DE GOUVÊA LEMOS

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CARTA AO GOUVÊA LEMOS

Por EUGÊNIO LISBOA

Caro amigo: Esta carta que hoje me apetece escrever-lhe é, se não estou em erro, a segunda que lhe envio. A primeira escrevi-lha (mas não cheguei a publicá-la ou ela não chegou a publicar-se) aqui há uns bons anos atrás: era uma prosa cheia de uma argumentação miúda, com a qual tentava provar-lhe aquilo que até certo ponto os factos se encarregaram de mostrar que não tinha lá muita viabilidade de prova... Como discordávamos, acabámos por ficar amigos. Assim vai o mundo!

Mas hoje o caso é outro. Porque lhe escrevo? Para lhe ser franco, não sei bem se conseguirei encontrar, por enquanto, uma resposta que possa ir muito além de um caprichoso «porque me apetece!» O caso é que vou escrever-lhe. E é até possível que, neste inútil exercício de um diletantismo que me é saboroso, eu acabe por encontrar, com alguma nitidez, o contorno das razões que por enquanto se me impõem apenas sob a forma nebulosa de uma violenta vontade de lhe escrever. Seja pois o que Deus quiser!

Dou ao diabo os escrúpulos que pudesse ter com a sua modéstia e aqui lhe vou dizer de frente o que até agora tenho andado a cochichar a alguns amigos comuns e sempre rigorosamente nas suas costas: Você é um jornalista de talento e, tanto para os que gostarão de o ouvir dizer, como para aqueles que vão gostar um pouco menos, como até para os que não vão gostar absolutamente nada, eu não hesitarei em lhe dizer que Você é não só o mais talentoso jornalista que tenho lido em jornais portugueses, como até um dos poucos que efectivamente honram essa profissão que o é tanto como qualquer outra. Mas esta opinião, que partilho de resto com vários amigos, não é ainda daquelas que tenho tido a preocupação de cochichar quando o apanho de costas voltadas. Se lha não dei já por estas palavras, tê-la-ei dado pouco mais ou menos nestes termos ou, em qualquer dos casos, não tive o cuidado expresso de lha não dar. Você não é mais vaidoso do que aquilo que é normal e até saudável ser-se e não ia portanto correr o risco de desintegrar-se só porque este seu modesto (mas malcriado) amigo é de opinião que Você, em matéria de jornalismo, é um «truta» dos antigos. O que eu nunca lhe disse. a si mas me tenho fartado de andar a dizer aos amigos (e aos outros) é que o seu talento, por muito que seja, é o que, em si, menos me impressiona. Para lhe ser franco, Gouvêa Lemos, estou-me até borrifando para o seu talento (já lhe disse que era malcriado!). Gosto, é claro, dele, como gostam todos os que o reconhecem, preciso (precisamos!) dele para que V.M. seja o que tem sido, aborrecer-me-ia imenso que os serviços que ele tem prestado deixassem de estar disponíveis, mas que quere Você?, sou feito assim: o talento e a inteligêniia das pessoas são qualidades admiráveis mas não creio que sejam elas, em si, aquilo que torna as pessoas dignas de estima e admiração. Até porque as pessoas possuidoras de tais predicados «nada» fizeram para os ter: foi a Madre-Natura, generosa e propiciadora, quem lhos ofertou com maior ou menor dose de arbitrariedade. Você, Gouvêa Lemos, não tem afinal culpa nenhuma do talento que possui! Do que Você já poderia ser culpado, e muito, era de não o ter sabido até agora empregar! Tudo está na orientação que se dá a tão perigosos dotes... E é precisamente aqui que eu começo a entrar na zona do que até agora não tem passado de cochichos. É muito simples: queria dizer--lhe que Você, muito mais e muito melhor do que ser uma pessoa cheiíssima de talento (há-os para aí às dúzias, há até cada vez mais!) é uma pessoa de carácter e é também um homem profundamente bom. Isto sim, estimo eu, que é uma dura aplicação e conquista de todos os dias, que exige uma luta sem quartel contra o que em nós convida à complacência e que põe à prova muito mais do que os talentos que o berço nos legou.

Você é forte, da força dos teimosos e dos íntegros, possui da honra um conceito muito antigo, um daqueles conceitos absolutistas e um pouco «farouches» que nós tínhamos quando éramos garotos e queríamos por força ser «sempre» os últimos a cuspir. Mas você, com tudo isto, é sobretudo um homem cheio de bonomia, de tolerância e de bondade. Você só é mau, rigorosamente, para si próprio... Ai, porém, de quem queira pisá-lo! Você tem arriscado a vida (a sua e a dos seus), tem feito mais do que arriscá-la: tem-na francamente comprometido! Você tem passado mal, um mal que não é eventual, mas continuo, persistente, corrosivo, daqueles que deprimem e oprimem, e no entanto, Você tem sempre uma palavra boa e um ar de optimismo que crucificam o mais pintado. Você tem tido todas as razões (e mais uma) para há muito se ter rendido e, no entanto, mesmo já sem balas, Você ainda usa o bacamarte à laia de cacete. Voltando ao meu tempo de miúdo e pondo-me a lembrar um velho e esquecido filme do Orson Welles (chamava-se «Jornada de Pavor» e às vezes há razão para se ter pavor), Você tem frequentemente sido o pobre do Joseph Cotten, também bonzão e tolerantíssimo), encurralado num quarto no extremo do corredor de um navio sinistro, rigorosamente sem saída, cercado por todos os lados (como as ilhas), sem armas, mas considerando muito a sério a possibilidade de salvação por via de um minúsculo canivete limpa-unhas! Confesse, Gouvêa Lemos, que era optimista e resistente o bom do Joseph Cotten! Teimosa raça de honestos que Vocês são! Embirrantes criaturas, chatíssimos trepadeiras, que despistam todos os cálculos daqueles para quem tudo é cálculo! É o que os desbarata — esbarrarem com algo que não tinha sido incluído nas previsões do orçamento: a honradez, a inteireza, as barbas do Vice Rei! E ficam logrados...

 Dizia o bom do Alexandre Dumas, Filho (regressámos à infância, lembra-se?, perdoe-me pois o pouco alevantado das citações...), dizia ele, o Alexandre Dumas, Filho, que «a honestidade é a maior de todas as malícias, porque é a única que os maliciosos não prevêem». Como é verdade! Que grande malandro, no meio de toda esta tristeza, Você acabou por me sair, ó Gouvêa Lemos! Alguns deles a contarem que Você fosse de se entregar e Você com aquele seu ar arrelampado, de olhos muito abertos e bigode murcho, a dizer na voz arrastada que a gente lhe conhece: «Eu lá disso de contas não sei nada! Eu até só sou teimoso!...» Pois é verdade, sempre acabei por achar aquilo que lhe queria dizer. Era afinal tão simples: do que gosto, em si, é, sobretudo, da honestidade, da tolerância, da bondade e dessa tão embirrenta maneira de ser «malicioso»... Parece--lhe pouco?

Salve, amigo velho! E até à próxima que há-de ser, se não estou em erro, no sábado, ao café, depois do almoço. Para nada em especial, apenas com o fim de, como diz uma boa amiga nossa, «discutirmos um assunto».

Seu,

EUGÊNIO LISBOA


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Da Tribuna para o Notícias da Beira... entre eles a importante passagem pela V.M.


Na edição de 03 de Janeiro de 1965 da "Voz de Moçambique" vem inserida em uma reportagem, intitulada "1965 E A IMPRENSA DIÁRIA", uma nota sobre a nova missão do Gouvêa Lemos no jornalismo moçambicano, que era de transformar o semanário "Notícias da Beira" em um diário.








domingo, 24 de março de 2019

CARTA AO GOUVÊA LEMOS (Por Eugênio Lisboa)




Esta carta que hoje me apetece escrever-lhe é, se não estou em erro, a segunda que lhe envio. A primeira escrevi-lha (mas não cheguei a publicá-la ou ela não chegou a publicar-se) aqui há uns bons anos atrás: era uma prosa cheia de uma argumentação miúda, com a qual tentava provar-lhe aquilo que até certo ponto os factos se encarregaram de mostrar que não tinha lá muita viabilidade de prova... Como discordávamos, acabámos por ficar amigos. Assim vai o mundo!
Mas hoje o caso é outro. Porque lhe escrevo? Para lhe ser franco, não sei bem se conseguirei encontrar, por enquanto, uma resposta que possa ir muito além de um caprichoso «porque me apetece!» O caso é que vou escrever-lhe. E é até possível que, neste inútil exercício de um diletantismo que me é saboroso, eu acabe por encontrar, com alguma nitidez, o contorno das razões que por enquanto se me impõem apenas sob a forma nebulosa de uma violenta vontade de lhe escrever.  Seja pois o que Deus quiser!
Dou ao diabo os escrúpulos que pudesse ter com a sua modéstia e aqui lhe vou dizer de frente o que até agora tenho andado a cochichar a alguns amigos comuns e sempre rigorosamente nas suas costas: Você é um jornalista de talento e, tanto para os que gostarão de o ouvir dizer, como para aqueles que vão gostar um pouco menos, como até para os que não vão gostar absolutamente nada, eu não hesitarei em lhe dizer que Você é não só o mais talentoso jornalista que tenho lido em jornais portugueses, como até um dos poucos que efectivamente honram essa profissão que o é tanto como qualquer outra. Mas esta opinião, que partilho de resto com vários amigos, não é ainda daquelas que tenho tido a preocupação de cochichar quando o apanho de costas voltadas. Se lha não dei já por estas palavras, tê-la-ei dado pouco mais ou menos nestes termos ou, em qualquer dos casos, não tire o cuidado expresso de lha não dar. Você não é mais vaidoso do que aquilo que é normal e até saudável ser-se e não ia portanto correr o risco de desintegrar-se só porque este seu modesto (mas malcriado) amigo é de opinião que Você, em matéria de jornalismo, é um «truta» dos antigos. O que eu nunca lhe disse a si mas me tenho fartado de andar a dizer aos amigos (e aos outros) é que o seu talento, por muito que seja, é o que, em si, menos me impressiona. Para lhe ser franco, Gouvêa Lemos, estou-me até borrifando para o seu talento (já lhe disse que era malcriado!). Gosto, é claro, dele, como gostam todos os que o reconhecem, preciso (precisamos!) dele para que V.M. seja o que tem sido, aborrecer-me-ia imenso que os serviços que ele tem prestado deixassem de estar disponíveis, mas que quere Você?, sou feito assim: o talento e a inteligência das pessoas são qualidades admiráveis mas não creio que sejam elas, em si, aquilo que torna as pessoas dignas de estima e admiração. Até porque as pessoas possuidoras de tais predicados «nada» fizeram para os ter: foi a Madre-Natura, generosa e propiciadora, quem lhos ofertou com maior ou menor dose de arbitrariedade. Você, Gouvéa Lemos, não tem afinal culpa nenhuma do talento que possui! Do que Você já poderia ser culpado, e muito, era de não o ter sabido até agora empregar! Tudo está na orientação que se dá a tão perigosos dotes... E é precisamente aqui que eu começo a entrar na zona do que até agora não tem passado de cochichos. É muito simples: queria dizer-lhe que Você, muito mais e muito melhor do que ser uma pessoa cheiíssima de talento (há-os para aí às dúzias, há até cada vez mais! ) é uma pessoa de carácter e é também um homem profundamente bom. Isto sim, estimo eu, que é uma dura aplicação e conquista de todos os dias, que exige uma luta sem quartel contra o que em nós convida à complacência e que põe à prova muito mais do que os talentos que o berço nos legou.
Você é forte, da força dos teimosos e dos íntegros, possui da honra um conceito muito antigo, um daqueles conceitos absolutistas e um pouco «farouches» que nós tínhamos quando éramos garotos e queriamos por força ser «sempre» os últimos a cuspir. Mas você, com tudo isto, é sobretudo um homem cheio de bonomia, de tolerância e de bondade. Você só é mau, rigorosamente, para si próprio... Ai, porém, de quem queira pisá-lo! Você tem arriscado a vida (a sua e a dos seus), tem feito mais do que arriscá-la: tem-na francamente comprometido! Você tem passado mal, um mal que não é eventual, mas contínuo, persistente, corrosivo, daqueles que deprimem e oprimem, e no entanto, Você tem sempre uma palavra boa e um ar de optimismo que crucificam o mais pintado. Você tem tido todas as razões (e mais urna)para há muito se ter rendido e, no entanto, mesmo já sem balas, Você ainda usa o bacamarte à laia de cacete. Voltando ao meu tempo de miúdo e pondo-me a lembrar um velho e esquecido filme do Orson Welles (chamava-se «Jornada de Pavor» e às vezes há razão para se ter pavor), Você tem frequentemente sido o pobre do Joseph Cotten, também bonzão e tolerantíssimo, encurralado num quarto no extremo do corredor de uns navio sinistro, rigorosamente sem saída, cercado por todos os lados (como as ilhas), sem armas, mas considerando muito a sério a possibilidade de salvação por via de um minúsculo canivete limpa-unhas! Confesse, Gouvêa Lemos, que era optimista e resistente o bom do Joseph Cotten! Teimosa raça de honestos que Vocés são! Embirrantes criaturas, chatíssimos trepadeiras, que despistam todos os cálculos daqueles para quem tudo é cálculo! É o que os desbarata — esbarrarem com algo que não tinha sido incluído nas previsões do orçamento: a honradez, a inteireza, as barbas do Vice-Rei! E ficam logrados...
Dizia o bom do Alexandre Dumas, Filho (regressámos à infância, lembra-se?, perdoe¬-me pois o pouco alevantado das citações...), dizia ele, o Alexandre Dumas, Filho, que «a honestidade é a maior de todas as malícias, porque é a única que os maliciosos não prevêem». Como é verdade! Que grande malandro, no meio de toda esta tristeza, Você acabou por me sair, ó Gouvêa Lemos! Alguns deles a contarem que Você fosse de se entregar e Você com aquele seu ar arrelampado, de olhos muito abertos e bigode murcho, a dizer na voz arrastada que a gente lhe conhece: «Eu lá disso de contas não sei nada! Eu até só sou teimoso!...»
Pois é verdade, sempre acabei por achar aquilo que lhe queria dizer. Era afinal tão simples: do que gosto, em si, é, sobretudo, da honestidade, da tolerância, da bondade e dessa tão embirrenta maneira de ser «malicioso»... Parece¬-lhe pouco?
Salvê, amigo velho! E até à próxima que há-de ser, se não estou em erro, no sábado, ao café, depois do almoço. Para nada em especial, apenas com o fim de, como diz uma boa amiga nossa, «discutirmos um assunto».

Seu,

EUGÉNIO LISBOA


VOZ DE MOÇAMBIQUE
13/9/1964

sábado, 23 de março de 2019

Lourenço Marques já foi uma cidade limpa




Desde tenra infância goza Lourenço Mar­ques da boa fama de cidade limpa. Boa e justa fama era essa, pois Lourenço Marques tinha, de facto, requintes de asseio, na sua parte mais visível e mais conhecida lá fora – a de cimento e asfalto.
Agora não. Há uns tempos a esta parte, vem a burguesa criatura a descuidar-se tanto de sua figura física, com tal desleixo na hi­giene, que parece outra. E já se mostram bem antigos os tempos em que o visitante chegava e dizia, na fatal entrevista: «Cidade bonita, cidade arrumadinha, cidade limpa». A gente sorria, enternecida, porque era verdade.
Nos dias que passam, ninguém pode referir-se com sinceridade o essa perdido faceta da risonha capital de Moçambique, onde, a meio das manhãs de sol, nada mais juncava o pavimento das ruas e dos passeios que não fossem as flores das acácias e dos jacarandás, dando aos repórteres o pretexto para a velha imagem das «ruas atapetadas, etc.».
Juncam hoje as ruas lixos diversos, esquecidos pelos carros de limpeza, desprezados pelos varredores. Tristes ficam os lixos todo o dia e vários dias, nas valetas, junto das árvores, às vezes acumulados em montículos com uma certa disciplina; muitas outras, caídos na mais vil anarquia, correndo loucamente por onde calha.
Oh, sim, Lourenço Marques já foi uma cidade limpa! Agora não. E, mesmo com o risco de levarem à conta de reaccionário saudosismo esta minha pretensão, atrevo-me a sugerir que o serviço municipal de limpeza abandone essas práticas modernas, talvez orientadas pelo nobre sentido de criar rápidamente na nossa berro amada cidade um certo «cachet» de velha cidade porca, ao estilo das mais célebres velhas cidades porcas dos mais velhos continentes, e que se retome a antiga fórmula de varrer muito bem varrido a capital, removendo escrupulosamente o lixo para a lixeira.
A limpeza não dá a felicidade mas ajuda muito.
Texto de
Gouvêa Lemos

Fotos de
José Amador

Voz de Moçambique – 4/4/1964