O assunto «lotarias» continua em pauta e,
pelo que se lê, teve o condão de interessar muita gente, que se manifesta com
entusiasmo nas colunas dos jornais. Não quero ignorá-lo e já que sobre ele
também tenho opinião, aqui a ofereço.
Ponho o problema assim: a lotaria é um
jogo de azar; os jogos de azar são um vício; logo, a lotaria é um vício. Por
isso, a solução mais corajosa e mais conveniente à sociedade que constituímos
em Moçambique seria proibir as lotarias todas, terminantemente. Mas poderá
alegar-se (e teremos que aceitar, como a tantas outras vergonhas e covardias
colectivas, chamadas «males necessários») que a lotaria é útil, pois que da sua
exploração basicamente desonesta, se colhem proventos destinados a sustentar
obras de assistência social. Pode-se, assim, considerar a lotaria um mal
necessário, consequentemente de falta de justiça social e, neste pé, admita-se,
encarando-se o problema com o inválido espírito cordato, que solicita «do mal,
o menos».
Agora, interessa averiguar o que mais
convém, no caso de Moçambique: se a continuação da venda, aqui, da lotaria
chamada nacional, com a supressão inevitável da lotaria dita provincial, se a
proibição daquela venda e a ressureição da finada lotaria de cá. Não percamos
tempo a cuidar das possibilidades de coexistência de ambas no nosso mercado,
pois provaram os factos a sua impraticabilidade e até o Provedor da Santa Casa
da Misericórdia, que esteve cá, afirmou que a lotaria provincial só se manteve
bem enquanto não teve concorrência.
Neste ponto, vejamos o que pesa a favor e
contra cada uma das lotarias:
A favor da «provincial»: - contribuiu
valiosamente para a Assistência Pública de Moçambique e parece que só começou a
contribuir menos, quando passou a vender-se mais, aqui, a lotaria da Metrópole;
- Os seus prémios são pagos
obrigatoriamente cá, em moeda aqui emitida, e não implica grossas
transferências de dinheiros para fora da província, nem por parte da
Administração da própria lotaria, nem por intermédio das firmas que se dedicam
à sua venda;
Contra ela: - só conta o facto, comum às
outras, de constituir um vício, o da jogatina generalizada, ao alcance de
todos.
Considera-se a favor da lotaria nacional o
seguinte: - contribui substancialmente para manter a obra assistencial da Santa
Casa da Misericórdia, na Metrópole e também ajuda valiosamente a Assistência de
Moçambique;
Em contrapartida: - como é lógico e
admissível canaliza para a Metrópole um nutrido caudal de dinheiros, afectando
notavelmente a economia da província, que, em vez de ser sangrada, precisa de
ser robustecida; numa época em que tanto se procura evitar importações,
reduzindo-as ao mínimo e, às vezes, abaixo desse mínimo, não está certo que se
importem toneladas de bilhetinhos coloridos, bem caros, fazendo-se um negócio
em que matematicamente se perde, pela própria natureza do jogo;
- por outro lado, não menos importante -
ou mais grave ainda - possibilita esssa lotaria o exercício ilegal de
transferências, em rendosas negociatas, feitas por quem não tem no comércio de
lotarias o simples interesse desse ramo.
- É grave o que digo? - Sim, é grave. Mas fala-se, por aí, muito, dum
verdadeiro mercado negro de cambiais e daqui chamo para isso a atenção de quem
tem o dever de averiguar o facto e punir os «contrabandistas de escudos», quer
os que fizeram o jeito, castigando com todo o rigor, seja quem for que tenha
participado nas operações. É difícil, bem sei; mas vale a pena, pois é
altamente injusto, é criminoso que, enquanto gente pobre tem dificuldades, ou,
pelo menos, tem de cumprir formalidades legais, ao transferir uns magros cobres
para a família, simultâneamente a lotaria duma Casa que até se chama Santa,
sirva de capa aos transfugas do capital e de veículo de evasão de verdadeiras
fortunas.
Um inquérito a isto, feito por gente capaz
e independente, é coisa que se impõe, com urgência.
Entretanto, para que à minha prosa não
falte nenhuma característica de crítica construtiva - coisa mal definida que se
exige muito aos jornalistas - aí vai a indispensável sugestão:
- Proíba-se a venda, em MOçambique, da
Lotaria de Lisboa; restabeleça-se a Lotaria Provincial; e ponha-se esta a
contribuir com uma percentagem para a Santa Casa da Misericórdia. Embora não
faça muita falta, à Administração da lotaria nacional, este tributo - como se
conclui do que disso o dr. Melo e Castro - com ele ficariam tranquilas as
nossas consciências, pois não seria furtada, à obra assistencial da Santa Casa,
a nossa ajuda. Assim, continuaríamos a colaborar com essa benemérita
instituição, sobre a qual, conforme palavras do seu Provedor aqui proferidas,
pesa «a maior parte da responsabilidade pela protecção social da cidade de
Lisboa, onde vão desaguar infelicidades e carências de todos os territórios
portugueses».
Ao fim e ao cabo, só se estragaria um
negócio, que não justifica especiais contemplações, em face do interesse geral.
[A
Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano 3, nº 46, 31 de Março de 1962, p. 1 e
11]
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