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domingo, 13 de outubro de 2013

O "Caso Tembe"



O suspeito Tembe estava para ser extraditado para a Suazilândia pelo governo português, indo contra a própria legislação de então. Após o GL escrever no seu estilo irônico e contundente a crônica que segue abaixo, as autoridades portuguesas em solo moçambicano mudaram de imediato o discurso e passaram a negar que o Tembe seria extraditado.
O falecido advogado Adrião Rodrigues conta-nos esta passagem no seu blogue "gaudium et spes" no texto intitulado "História do Zeca Russo ou o assassinato de um chefe de polícia" que transcreverei logo após a crônica. Percebe-se um equivoco do Adrião Rodrigues quando fala em ter sido o texto escrito na Tribuna, pois acabei por a identificar no Número 101 da Voz de Moçambique, mas este não prejudica em nada o relato da história de um dos grandes chapas do GL.
Segue então o que interessa!

EDITORIAL

O "CASO - TEMBE"
Ocupou-se o Imprensa diária, largamente, do caso de um tal Fernando Tembe, português, natural de Moçambique, que tendo cometido crime de assassínio na Suazilândia e ali sendo condenado à morte, con­seguiu evadir-se para a sua terra e aqui veio a ser preso, como autor de avultado roubo, no concelho da Matola.
Está, agora, o réu de tão graves acusações sob a alçada das nossas leis, isto é, submetido à Justiça da sua pátria e pode, assim, afirmar-se que Fernando Tembe tem, desta feita, a melhor oportunidade possível de conhecer inteiramente as vantagens de ser português.
De facto, ao atravessar a linha de fronteira entre o país onde estava prestes a ser morto por ter matado e a terra em que viera à luz do mundo e vivera os seus primeiros anos ainda inocentes, o assassino e ladrão transferiu-se do âmbito duma Lei, que reco­nhece ao homem o direito de matar o homem como castigo, considerando o criminoso um elemento deletério  irrecuperável, que é necessário segregar definitivamente  para a luz duma outra Lei mais humana, que teima em ver no homem, por mais baixo que ele desça, um ser humano com um mínimo indestrutível de dignidade, com uma capacidade íntima de se redi­mir, punindo-o mas não o suprimindo, e ao puni-lo o faz sempre com a ressalva de o poder um dia rein­tegrar na sociedade de que presentemente é consi­derado inimigo.
O que vai, então, acontecer a Fernando Tembe? Vai, por certo, ser julgado na sua terra, pelas suas leis, usando, no Tribunal, de todas as garantias que essas mesmas leis lhe consignam; poderá ser conde­nado e, também, à pena máxima; dará, por isso, en­trada num estabelecimento prisional, para cumprir a sentença de viver sem liberdade entre duas e três dezenas de anos. Desde início, agindo sobre ele um moderno sistema jurídico-penal, passará imediata­mente a ser útil ao seu semelhante, pelo trabalho diário, de caracter agrícola ou industrial, ao mesmo tempo que se começa a processar a tarefa lenta da sua recuperação.
Quer dizer que Fernando Tembe, com tão grande dívida para a   humanidade, começará fogo o seu paga­mento, em vez de se transformar simplesmente em mais uma vida perdida, a somar às que ele ceifou. Por isso é que, humanissimamente, a Lei portuguesa não aplica a pena de morte. Porque se baseia na crença em que o homem pode sempre salvar-se e na certeza de que ele não tem direito sobre a vida humana.
Não acontecerá a Fernando Tembe aquilo que, por má informação, chegou a supor-se, isto é, a extra­dição para a Suazilândia, onde cumpriria a pena má­xima, na forca; Isso seria uma abdicação da nossa Justiça, uma subserviência das nossas autoridades e, finalmente, uma desumanidade nada portuguesa.
Se Fernando Tembe é de Moçambique será julgado em Moçambique; se é português, serão olhados os seus crimes à luz das leis portuguesas e, segundo elas, serão punidos.
Não tenhamos dúvidas de que assim vai acontecer.

Ano IV – No. 101 – 2 de Novembro de 1963 – Página 3


Abaixo, retalho do texto de Adrião Rodrigues de 16 de Fevereiro de 2007...

Nessa altura, o nosso grupo (eu, o Eugénio Lisboa, o Rui Knopfli, o Fernando Magalhães, o Zé Craveirinha e outros) colaborávamos ( à borla ), na TRIBUNA cuja redacção era chefiada pelo Gouveia Lemos, que, esse, não trabalhava à borla mas se via à nora para receber o vencimento. A Tribuna era o jornal da oposição, tanto quanto a censura deixava, e funcionava democraticamente. Assim, perante tal boato, o Gouveia Lemos ouviu-me primeiro, como jurista do grupo.Eu expliquei-lhe que essa coisa de entrega administrativa de presos policia a policia de países diferentes não existia no nosso direito e que a sua prática podia transformar a detenção pela policia moçambicana em sequestro, o que seria grave A única medida admissível era a extradição,naquele caso inaplicável, porquanto o Tembe era português e o crime porque seria julgado na África do Sul era punido com pena de morte,contrátia à ordem jurídica portuguesa o que impedia a extradição..Portanto o boato merecia uma notícia desenvolvida ou mesmo um artigo de fundo.O Gouveia Lemos decidiu ouvir ainda o grupo. Todos eramos contra a pena de morte, provavelmente o Tembe era um bandido mas como era português tinha o direito de ser julgado pelos tribunais portugueses não correndo o risco de ser sujeito à pena capital. Assim o Gouveia Lemos escreveria um artigo de fundo, cauteloso na formulação mas intransigente nos princípios. Isto foi deliberado unanimemente pelo grupo, incluído o Gouveia Lemos.. Este escreveu um dos artigos de fundo mais notável da literatura jornalística portuguesa, intitulado “A VANTAGEM DE SER PORTUGUES “, que devia ser dado nas universidades de jornalismo portuguesas.O governador de Moçambique lia com muita atenção a TRIBUNA.Se esta lhe tivesse mandado, como presente uma caixa de Champanhe, ele não ficaria mais contente. Pôs-se de imediato em acção, deu ordens terminantes à policia para nem pensarem em entregar o Tembe aos sul-africanos e fez um desmentido simpático à hipótese avançada pela TRIBUNA e assegurando que o “ português” Tembe não seria extraditado.Ora as policias moçambicana e sul-africanas fartaram-se de entregar prisioneiros uma à outra. Eu, alem dos de ouvir dizer, conheço dois casos concretos: um, o do Álvaro Simões, que depois de julgado por razões políticas e absolvido, em Joanesburgo, foi metido numa carrinha à saída do tribunal, pela policia sul-africana e trazido à força para Lourenço Marques e entregue à PJDE que o submeteu a novo julgamento ; outro foi o caso dos refugiados moçambicanos na SUÁZILANDIA( país independente), levados à falsa-fé por agentes sul-africanos para NELSPRUIT, já na República da África do Sul e daí entregues à PIDE em Lourenço Marques.Mas o governador tinha que dizer aquilo e nós queríamos safar o Tembe da hipótese da forca, pelo que não houve mais polémicas e ele foi julgado e condenado a um ror se anos de cadeia.De modo que em 25 de Abril e em 7 de Setembro de 1974 estavam ambos, Tembe e Zeca Russo, presos em Lourenço Marques.


Um comentário:

  1. Exemplo de jornalismo apurado. Ao não se envolverem nas polêmicas que o caso em si poderia provocar, concentraram-se nos fatos relevantes, e conseguindo assim, que a lei fosse cumprida...pelo menos uma vez. E extradição ilegal foi bloqueada e o assassino Tembe teve mais uma chance de vida. Se aproveitou ou não, não sabemos, mas a lei de um pa¿is deverá sempre ser para todos os seus cidadãos.

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