de Gouvêa Lemos
Jornal Tribuna – 1962
Desde muito pequeno, Eutanásia me
significou nome de mulher. Aliás, feio nome. Mais tarde, quando comecei a ouvir
umas conversas de gente grande entre os meus pais e os meus tios que eram
médicos, estabeleceu-se outra confusão e passei a considerar eutanásia uma
doença rara, vindo do Oriente. Só maiorzinho, já a bulir em dicionários e a ler
uns livrinhos, é que percebi que a eutanásia pode ser sinônimo de assassínio.
Matar uma criancinha é cometer um
infanticídio. Infanticídio é (horrível) assassínio, em principio punível por
lei – parece que em todo o mundo. Há, no entanto, circunstâncias que,
frequentemente, fazem que um assassino não seja punido; mas não conseguem que
deixe de ser assassino.
Por isso, em relação ao
famigerado julgamento de Liège, o que se pode ser discutido é a justeza da
sentença, no caso especial a mãe desventurada que pariu um filho defeituoso, em
consequência de uma droga que tomou e tem provocado monstros em outros ventres
maternos. Devia ou não ser absolvida, como foi a ré Susane Vandepute, acusada
de matar o seu filho?
(Aqui pode usar-se o eufemismo
‘eutanásia’). Considerados as circunstâncias em que praticou o infanticídio,
devia ela, ou não ser condenada?
Até porque na formação da
resposta – tal como aconteceu com a população de Liège – entram ainda factores
de ordem emocional, acredito que a um largo inquérito assim feito, aqui na
nossa cidade, respondesse uma notável maioria de aplausos aos juízes belgas.
Mas a questão fundamental é a do
princípio, que à Humanidade interessa conhecer até que ponto foi abalado com
este caso; o que mais deve preocupar-nos é verificar as roturas produzidas em
toda uma estrutura de regras sociais e códigos morais e jurídicos, mas não vá
ficar aberto um importantíssimo precedente, segundo o qual ao Homem cabe o
direito de controlar pela supressão de vidas, a continuação da sua espécie.
Isso sim, parece-me fundamental.
E tanto, que, por poderem responder afirmativamente a essa pergunta, foi que os
teóricos do nazismo justificaram a morte científica (eutanásia não é morte
científica?) de milhões de judeus, a esterilização de seres humanos
‘inconvenientes’ ao Homem, a aniquilação total de uma raça “inferior”.
Em face de cada caso isolado, nos
podemos comover-nos, exaltar-nos ou encolerizar-nos; mas para lá do
acontecimento e acima da pessoa em causa, temos de descortinar a sua
representação no plano universal, a sua repercussão em toda a Humanidade.
Neste caso, eu perfilho o ponto
de vista cristão; estou com o
“Observatore Romano” e concordo com o Padre José Alves, na sua resposta ao
inquérito deste jornal. Mas parece-me que a um ateu não faltam razões para esta
mesma posição, mesmo ignorando o quinto mandamento; não matarás!
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Pois não será a eutanásia desumana e anti-natural?
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Não será uma abdicação inglória – à priori – da Ciência,
que sabe estarem à sua espera os mistérios que se hão-de abrir, a um, à sua
passagem lenta mas determinada e heróica?
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Não será uma atitude cobarde, a da mãe, pegando-se a
cumprir um mandado da natureza, feito de carinho, persistência, abnegação e
esperança?
Quais serão, ao fim e ao caso, as
razões aceitáveis da eutanásia, que não se situem num plano inferior da
natureza humana? Poderão alegar-se que
elas se fincam no propósito ser recém-nascido, a quem espera uma vida
certamente infernal, inútil, vergonhosa.
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Mas quem sabe que será infernal? Onde está lá
estabelecida uma escala para o inferno da vida?
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Quem garante que será inútil a vida de um ser humano, lá
porque o corpo é deformado?
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Quem nos diz que no futuro teria motivos de
envergonhar-se e não orgulhar-se esse que nasceu e a mãe, tresloucada de dor,
matou, em Liège?
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Quem? A mãe, o médico, os juízes? Não, ninguém.
O Homem não pode ser juiz do Homem;
muito menos pode dispor da sua vida. E isso não tem nada a ver com a idade. Ser
vivo há minutos ou horas ou dias ou meses ou anos – é ser vivo. No entanto,
quando uma criança já tem uma certa idade, o infanticídio parece que deixa de
chamar-se eutanásia...
Quanto à miséria a que, muito
provavelmente, o ser deformado fisicamente, será votado – os aleijadinhos a
pedir esmola, a vender cautelas –, não devemos esquecer que os miseráveis deste
mundo não são; via de regra, aleijados a que a luta contra a miséria não se faz
nascer, mas em vida e quanto mais se viver e quantos mais vivermos para lutar
! Aí não mete o bico a eutanásia.