Translate / Tradutor

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Eutanásia

Coluna “Teclado Universal” 
de Gouvêa Lemos
Jornal Tribuna – 1962


Desde muito pequeno, Eutanásia me significou nome de mulher. Aliás, feio nome. Mais tarde, quando comecei a ouvir umas conversas de gente grande entre os meus pais e os meus tios que eram médicos, estabeleceu-se outra confusão e passei a considerar eutanásia uma doença rara, vindo do Oriente. Só maiorzinho, já a bulir em dicionários e a ler uns livrinhos, é que percebi que a eutanásia pode ser sinônimo de assassínio.
Matar uma criancinha é cometer um infanticídio. Infanticídio é (horrível) assassínio, em principio punível por lei – parece que em todo o mundo. Há, no entanto, circunstâncias que, frequentemente, fazem que um assassino não seja punido; mas não conseguem que deixe de ser assassino.
Por isso, em relação ao famigerado julgamento de Liège, o que se pode ser discutido é a justeza da sentença, no caso especial a mãe desventurada que pariu um filho defeituoso, em consequência de uma droga que tomou e tem provocado monstros em outros ventres maternos. Devia ou não ser absolvida, como foi a ré Susane Vandepute, acusada de matar o seu filho?
(Aqui pode usar-se o eufemismo ‘eutanásia’). Considerados as circunstâncias em que praticou o infanticídio, devia ela, ou não ser condenada?
Até porque na formação da resposta – tal como aconteceu com a população de Liège – entram ainda factores de ordem emocional, acredito que a um largo inquérito assim feito, aqui na nossa cidade, respondesse uma notável maioria de aplausos aos juízes belgas.
Mas a questão fundamental é a do princípio, que à Humanidade interessa conhecer até que ponto foi abalado com este caso; o que mais deve preocupar-nos é verificar as roturas produzidas em toda uma estrutura de regras sociais e códigos morais e jurídicos, mas não vá ficar aberto um importantíssimo precedente, segundo o qual ao Homem cabe o direito de controlar pela supressão de vidas, a continuação da sua espécie.
Isso sim, parece-me fundamental. E tanto, que, por poderem responder afirmativamente a essa pergunta, foi que os teóricos do nazismo justificaram a morte científica (eutanásia não é morte científica?) de milhões de judeus, a esterilização de seres humanos ‘inconvenientes’ ao Homem, a aniquilação total de uma raça “inferior”.
Em face de cada caso isolado, nos podemos comover-nos, exaltar-nos ou encolerizar-nos; mas para lá do acontecimento e acima da pessoa em causa, temos de descortinar a sua representação no plano universal, a sua repercussão em toda a Humanidade.
Neste caso, eu perfilho o ponto de vista cristão; estou com  o “Observatore Romano” e concordo com o Padre José Alves, na sua resposta ao inquérito deste jornal. Mas parece-me que a um ateu não faltam razões para esta mesma posição, mesmo ignorando o quinto mandamento; não matarás!
-         Pois não será a eutanásia desumana e anti-natural?
-         Não será uma abdicação inglória – à priori – da Ciência, que sabe estarem à sua espera os mistérios que se hão-de abrir, a um, à sua passagem lenta mas determinada e heróica?
-         Não será uma atitude cobarde, a da mãe, pegando-se a cumprir um mandado da natureza, feito de carinho, persistência, abnegação e esperança?
Quais serão, ao fim e ao caso, as razões aceitáveis da eutanásia, que não se situem num plano inferior da natureza humana?  Poderão alegar-se que elas se fincam no propósito ser recém-nascido, a quem espera uma vida certamente infernal, inútil, vergonhosa.
-         Mas quem sabe que será infernal? Onde está lá estabelecida uma escala para o inferno da vida?
-         Quem garante que será inútil a vida de um ser humano, lá porque o corpo é deformado?
-         Quem nos diz que no futuro teria motivos de envergonhar-se e não orgulhar-se esse que nasceu e a mãe, tresloucada de dor, matou, em  Liège?
-         Quem? A mãe, o médico, os juízes? Não, ninguém.

O Homem não pode ser juiz do Homem; muito menos pode dispor da sua vida. E isso não tem nada a ver com a idade. Ser vivo há minutos ou horas ou dias ou meses ou anos – é ser vivo. No entanto, quando uma criança já tem uma certa idade, o infanticídio parece que deixa de chamar-se eutanásia...
Quanto à miséria a que, muito provavelmente, o ser deformado fisicamente, será votado – os aleijadinhos a pedir esmola, a vender cautelas –, não devemos esquecer que os miseráveis deste mundo não são; via de regra, aleijados a que a luta contra a miséria não se faz nascer, mas em vida e quanto mais se viver e quantos mais vivermos para lutar !  Aí não mete o bico a eutanásia.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Para Jacqueline Kennedy

Em 22 de Novembro de 1963, John Kennedy foi assassinado, em Dallas, quando começava a preparar a sua campanha para a reeleição como Presidente dos Estados Unidos. Houve quem não quisesse que isso acontecesse e interromperam a vida de um grande líder mundial.
No dia 08 de Dezembro desse mesmo ano, Gouvêa Lemos escreve um artigo em formato de carta para a viúva Jacqueline, para a encorajar ao enaltecer os valores do seu recém falecido marido. Valores esses tão necessários em um Moçambique daqueles tempos coloniais. Valores raros em um estado ditatorial de direita. 



Para Jacqueline Kennedy

Perdoe, Jacqueline, que lhe escreva numa linguagem nada formal, este bilhete apressado, recado breve de irmão. Aliás, agora que saiu da Casa Branca, Jacqueline, ainda com os olhos belos pisados mas dignamente enxutos, sinto-a tão fraternal quanto brutalmente foi demitida do seu lugar de Primeira Dama da América.
Não vou ainda dizer-lhe como sofri per si. Já sabe. Quem não sofreu, meu Deus? Quem pôde não sofrer? Só gente que não é gente.
Vou antes felicitá-la pela morte, assim como foi, do seu marido John Fitzgerald Kennedy. Felicitá-la, sim, Jackie; bem me entende.
Se a vida pública de seu marido foi útil e como Presidente do seu país ele se esforçou, com firmeza e coragem, por fazer valer os direitos civis de todos os americanos, não há hoje dúvida nenhuma de que o seu assassínio pago pelo ódio da reação sublimou a luta em que morreu, realçou o ideal, foi a cúpula harmoniosa dum grandioso panteão, sustentada por braços de homens redimidos.
Jacqueline: quem se dedica inteiramente à obra da Paz, quem defende os humildes, proclama o primado do Direito, luta pela Liberdade, quem aponta, em nome da Justiça, a sua espada às gargantas dos poderosos, quem isso faz, minha Irmã, muito se arrisca e raro é não morrer em combate; somente acontece que contínua combatendo para lá da morte; e quando o matam é ele quem vence.
Devemos estar certos de que o seu valente John está neste momento a ver, lá de cima, como valeu a pena; e aquele sorriso aberto e jovem vai-Ihe pregueando o rosto e brilha no olhar, enquanto lhe pede que não chore a morte do herói pois morreu gloriosamente.
Quanto a si, Jacqueline, bem sabe como nós vamos continuar a ver na sua figura grácil a personificação do espírito que reinou até há pouco nas salas da Casa Branca; um ar de optimimsmo, um halo de humanidade, um jeito de compreensão, um toque de tolerância, um rictus de decisão, um olhar de fé. Jacqueline Kennedy, o mundo vai continuar a estimá-la e a chamar-lhe Jackie. E a nossa voz. feita de milhões de vozes, será parecida, aos seus ouvidos, com a de John. Deus abençoe os seus filhos, Jackie.

GOUVÊA LEMOS


Ano IV – No. 106 – 08 de Dezembro de 1963 – Página 11

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

0 NATAL DE TODOS NÓS


Hoje, dia 18 de Dezembro de 2013, Gouvêa Lemos faria 89 anos de idade. Sendo também tempos de Natal, reedito o editorial da Voz de Moçambique da semana de 21 de Dezembro de 1963, há exatos cinquenta anos atrás.
Um texto, intitulado de "O Natal de todos nós",  que demonstra a coragem daqueles que naqueles tempos escreviam  em meio e para uma sociedade onde uma grande parcela era o extrato de uma ditadura racista. Um texto limpo, sereno, mas que disfarçadamente - nem tanto - cutucava a ferida, fugindo ainda assim dos censuradores.



EDITORIAL

0 NATAL DE TODOS NÓS



        0 Natal é um facto histórico ocorrido há 1963 anos. De tal forma influenciou a vida humana esse nascimento dum Homem que se chamou Jesus Cristo e os cristãos acreditam ser filho de Deus e o próprio Deus humanizado, que esse acontecimento ocorrido em modesto estábulo, nos arredores duma cidade do Oriente Médio, se transformou não só em causa duma religião, em fonte duma doutrina, em origem dum novo ideário moral e social, mas em símbolo de todos os anseios da Humanidade, em degrau da sua esca­lada para a perfeição, em bandeira do seu progresso — mesmo para os não-cristãos.
Isso tudo se resume e se comprova no facto de o Dia de Natal ser considerado, no mundo inteiro, o Dia da Fraternidade Universal. O Natal faz os ho­mens irmãos.
Param as guerras, guardam-se as armas, esque­cem-se os ódios, porque é Natal; suspende-se a cor­rida que leva a nenhures, no combate sem pausa por ser mais rico havendo mais pobres, para um gesto de generosidade, porque é Natal; recolhe-se a casa, re­encontra-se a família, identifica-se cada um com o ambiente que o cerca vivendo-o intensamente, porque é Natal.
E isto acontece, independentemente de se acre­ditar ou não em que Jesus Cristo era Deus; só porque ele foi um Homem que morreu pelos outros homens; só porque ele é o Herói dos heróis que se sacrificam no altar da redenção dos homens.
Ora, em mais este Natal vivido em Moçambique, precisamente quando nos interrogam graves pergun­tas plantadas na linha do horizonte, o Natal surge-nos como a revelação, a luz que ilumina o caminho, a resposta de todas as questões.
Se Cristo nasceu, viveu e veio a morrer por todos os homens; se veio pregar a fraternidade, o amor e a paz entre todos os homens, se veio garantir que são igualmente filhos de Deus todos os homens; tendo, cada um, a mesma implícita dignidade; se veio verberar os fariseus, que, por se julgarem melhores e su­periores, humilham e exploram os seus irmãos; se a legenda do Natal é uma lição de humildade e se a mensagem de Cristo é de esperança, devemos nós ter fé em que o futuro justificará a nossa esperança desde que saibamos construir esse futuro sobre uma autêntica fraternidade e paz, não só com a ordem mas principalmente com a justiça, reconhecendo em cada ser humano um igual nosso, com as mesmas intrínsecas exigências e os mesmos naturais direitos.
Se, em resumo, conseguirmos que, sempre, cada Natal que passa venha a ser o Natal de todos nós.

Ano IV – No. 101 – 21 de Dezembro de 1963 – Página 3

domingo, 13 de outubro de 2013

O "Caso Tembe"



O suspeito Tembe estava para ser extraditado para a Suazilândia pelo governo português, indo contra a própria legislação de então. Após o GL escrever no seu estilo irônico e contundente a crônica que segue abaixo, as autoridades portuguesas em solo moçambicano mudaram de imediato o discurso e passaram a negar que o Tembe seria extraditado.
O falecido advogado Adrião Rodrigues conta-nos esta passagem no seu blogue "gaudium et spes" no texto intitulado "História do Zeca Russo ou o assassinato de um chefe de polícia" que transcreverei logo após a crônica. Percebe-se um equivoco do Adrião Rodrigues quando fala em ter sido o texto escrito na Tribuna, pois acabei por a identificar no Número 101 da Voz de Moçambique, mas este não prejudica em nada o relato da história de um dos grandes chapas do GL.
Segue então o que interessa!

EDITORIAL

O "CASO - TEMBE"
Ocupou-se o Imprensa diária, largamente, do caso de um tal Fernando Tembe, português, natural de Moçambique, que tendo cometido crime de assassínio na Suazilândia e ali sendo condenado à morte, con­seguiu evadir-se para a sua terra e aqui veio a ser preso, como autor de avultado roubo, no concelho da Matola.
Está, agora, o réu de tão graves acusações sob a alçada das nossas leis, isto é, submetido à Justiça da sua pátria e pode, assim, afirmar-se que Fernando Tembe tem, desta feita, a melhor oportunidade possível de conhecer inteiramente as vantagens de ser português.
De facto, ao atravessar a linha de fronteira entre o país onde estava prestes a ser morto por ter matado e a terra em que viera à luz do mundo e vivera os seus primeiros anos ainda inocentes, o assassino e ladrão transferiu-se do âmbito duma Lei, que reco­nhece ao homem o direito de matar o homem como castigo, considerando o criminoso um elemento deletério  irrecuperável, que é necessário segregar definitivamente  para a luz duma outra Lei mais humana, que teima em ver no homem, por mais baixo que ele desça, um ser humano com um mínimo indestrutível de dignidade, com uma capacidade íntima de se redi­mir, punindo-o mas não o suprimindo, e ao puni-lo o faz sempre com a ressalva de o poder um dia rein­tegrar na sociedade de que presentemente é consi­derado inimigo.
O que vai, então, acontecer a Fernando Tembe? Vai, por certo, ser julgado na sua terra, pelas suas leis, usando, no Tribunal, de todas as garantias que essas mesmas leis lhe consignam; poderá ser conde­nado e, também, à pena máxima; dará, por isso, en­trada num estabelecimento prisional, para cumprir a sentença de viver sem liberdade entre duas e três dezenas de anos. Desde início, agindo sobre ele um moderno sistema jurídico-penal, passará imediata­mente a ser útil ao seu semelhante, pelo trabalho diário, de caracter agrícola ou industrial, ao mesmo tempo que se começa a processar a tarefa lenta da sua recuperação.
Quer dizer que Fernando Tembe, com tão grande dívida para a   humanidade, começará fogo o seu paga­mento, em vez de se transformar simplesmente em mais uma vida perdida, a somar às que ele ceifou. Por isso é que, humanissimamente, a Lei portuguesa não aplica a pena de morte. Porque se baseia na crença em que o homem pode sempre salvar-se e na certeza de que ele não tem direito sobre a vida humana.
Não acontecerá a Fernando Tembe aquilo que, por má informação, chegou a supor-se, isto é, a extra­dição para a Suazilândia, onde cumpriria a pena má­xima, na forca; Isso seria uma abdicação da nossa Justiça, uma subserviência das nossas autoridades e, finalmente, uma desumanidade nada portuguesa.
Se Fernando Tembe é de Moçambique será julgado em Moçambique; se é português, serão olhados os seus crimes à luz das leis portuguesas e, segundo elas, serão punidos.
Não tenhamos dúvidas de que assim vai acontecer.

Ano IV – No. 101 – 2 de Novembro de 1963 – Página 3


Abaixo, retalho do texto de Adrião Rodrigues de 16 de Fevereiro de 2007...

Nessa altura, o nosso grupo (eu, o Eugénio Lisboa, o Rui Knopfli, o Fernando Magalhães, o Zé Craveirinha e outros) colaborávamos ( à borla ), na TRIBUNA cuja redacção era chefiada pelo Gouveia Lemos, que, esse, não trabalhava à borla mas se via à nora para receber o vencimento. A Tribuna era o jornal da oposição, tanto quanto a censura deixava, e funcionava democraticamente. Assim, perante tal boato, o Gouveia Lemos ouviu-me primeiro, como jurista do grupo.Eu expliquei-lhe que essa coisa de entrega administrativa de presos policia a policia de países diferentes não existia no nosso direito e que a sua prática podia transformar a detenção pela policia moçambicana em sequestro, o que seria grave A única medida admissível era a extradição,naquele caso inaplicável, porquanto o Tembe era português e o crime porque seria julgado na África do Sul era punido com pena de morte,contrátia à ordem jurídica portuguesa o que impedia a extradição..Portanto o boato merecia uma notícia desenvolvida ou mesmo um artigo de fundo.O Gouveia Lemos decidiu ouvir ainda o grupo. Todos eramos contra a pena de morte, provavelmente o Tembe era um bandido mas como era português tinha o direito de ser julgado pelos tribunais portugueses não correndo o risco de ser sujeito à pena capital. Assim o Gouveia Lemos escreveria um artigo de fundo, cauteloso na formulação mas intransigente nos princípios. Isto foi deliberado unanimemente pelo grupo, incluído o Gouveia Lemos.. Este escreveu um dos artigos de fundo mais notável da literatura jornalística portuguesa, intitulado “A VANTAGEM DE SER PORTUGUES “, que devia ser dado nas universidades de jornalismo portuguesas.O governador de Moçambique lia com muita atenção a TRIBUNA.Se esta lhe tivesse mandado, como presente uma caixa de Champanhe, ele não ficaria mais contente. Pôs-se de imediato em acção, deu ordens terminantes à policia para nem pensarem em entregar o Tembe aos sul-africanos e fez um desmentido simpático à hipótese avançada pela TRIBUNA e assegurando que o “ português” Tembe não seria extraditado.Ora as policias moçambicana e sul-africanas fartaram-se de entregar prisioneiros uma à outra. Eu, alem dos de ouvir dizer, conheço dois casos concretos: um, o do Álvaro Simões, que depois de julgado por razões políticas e absolvido, em Joanesburgo, foi metido numa carrinha à saída do tribunal, pela policia sul-africana e trazido à força para Lourenço Marques e entregue à PJDE que o submeteu a novo julgamento ; outro foi o caso dos refugiados moçambicanos na SUÁZILANDIA( país independente), levados à falsa-fé por agentes sul-africanos para NELSPRUIT, já na República da África do Sul e daí entregues à PIDE em Lourenço Marques.Mas o governador tinha que dizer aquilo e nós queríamos safar o Tembe da hipótese da forca, pelo que não houve mais polémicas e ele foi julgado e condenado a um ror se anos de cadeia.De modo que em 25 de Abril e em 7 de Setembro de 1974 estavam ambos, Tembe e Zeca Russo, presos em Lourenço Marques.


domingo, 22 de setembro de 2013

Aeroporto Gago Coutinho

Aeroporto Gago Coutinho (fonte: "internet")

está uma idéia feliz, em inaugurar-se a nova es­tação aérea de Lourenco Marques no dia 17 de Ju­nho, comemorando-se a chegada ao Rio de Janeiro dum frágil hidravião mono-motor, sem rádio nem apoio marítimo, sem patrocínios poderosos nem publicidades sensacionalistas. Cha­mava-se o aparelho «Lusitânia», tripulavam - no um senhor piloto Sacadura Ca­bral e um senhor navega­dor Gago Coutinho, sendo que este último ia a expe­rimentar um sextante de sua invenção, com horizon­te artificial, que depois ha­via de ser usado por todos os navegantes.
Também foi uma idéia brilhante, essa de chamar ao nosso campo de avia­ção o Aeroporto Gago Cou­tinho, homenageando o marinheiro e o cientista, o in­cansável geógrafo que tan­to trabalhou em Moçambi­que e do seu trabalho dei­xou valiosos resultados ain­da bem patentes, como se verifica facilmente nos Ser­viços Geográficos e Cadas­trais, como confirmam, à uma, todos os topógrafos e agrimensores de Moçambi­que. Além disso, Gago Cou­tinho sempre ficou ligado a esta tetra pelo sentimento da saudade e a sua pele rugosa de velhinho nunca mais se libertou da lem­brança doce das brisas do Índico.
Vendo bem, Gago Coutinho foi, dos portugueses contemporâneos, a figura melhor representativa das mais positivas qualidades do espírito luso — já se pensou nisso?
Ele era destemido e sá­bio, trabalhador e genero­so, abnegado e tolerante, sedento de universo, famin­to de humanidade, realizando o mundo português num plano tão acima da política e dos negócios, que nunca se apercebeu, por exemplo, de que o Bra­sil era um país indepen­dente. Fronteiras, onde es­tavam elas?/ O Atlântico? ... Mas não era seu, o Atlântico? Não o galgara ele? Não o continuara a vencer, tantas e tantas ve­zes, por ar ou pela superfície, quase até morrer? A língua?... Mas era a mes­ma, senhores! Os amigos, os admiradores, os colegas, os discípulos? Ora, onde os teria ele mais numerosos? No Rio de Janeiro ou em Lisboa? Dir-se-á, em Lis­boa, que Gago Coutinho era muito lisboeta. Pode di­zer-se, no Rio, que era muito carioca. Então? Onde fica a pátria do Almirante?
Felicíssima idéia, essa de darem o nome de Gago Coutinho ao aeroporto de Lourenço Marques. Um  velhinho que ilustrou na Terra a promessa do Evange­lho: os últimos serão os primeiros e os primeiros serão  os  últimos. Morreu famoso e ficou célebre, ainda que vivesse humilhando-se e procurando apagar-se. Podia ter sido um dos notáveis da época, um pre­sidente do conselho de administração. um deputado ou coisa assim, podia ter sido, enfim, tanta coisa, e ficou só oficial de marinha reformado. Mas cidadão do mundo, é verdade: tran­seunte enternecido de ocea­nos; português com pureza, porque despido de idéias de domínio, lavado de di­videndos.
Ele encarnava, sem dúvida, o espirito lusitano. O autêntico. O que pode sub­sistir, porque transcende as contingências históricas.
Agora, que inauguraram a bela estação  aérea de Lourenço Marques  no dia em que passava o 41.0 aniversário   da   travessia do Atlântico  Sul  em  avião e que lhe deram o nome de Gago   Coutinho,  só falta uma coisa para completar a homenagem justa e, até,  o    conjunto arquitectónico da aerogare: a estátua do Almirante,   em   frente do edifício.  Estou  a lembrar-me dum enorme Leonardo da Vinci, que se ergue em frente do moderno aeropor­to de Fiumicino, em Roma. E, embora me tenha habituado a antipatizar com es­tátuas, bustos  e lápides, neste caso, sou pela está­tua.

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano IV, nº 96, 29 de Junho de 1963, p. 12]

Gouvêa Lemos na "Voz de Moçambique"


Depois da sua fase no jornal “Tribuna”, onde exerceu a multi- função de vice-diretor e chefe de redação, Gouvêa Lemos assumiu a redação da “Voz de Moçambique” no inicio de 1963. A sua primeira crônica, nesta fase, foi na edição no. 68, IV Ano, de 28 de Fevereiro de 1963, ainda quando era editada quinzenalmente. A entrada de Gouvêa Lemos na equipe da “Voz de Moçambique” tinha como objetivo assumir a responsabilidade de transformar o jornal em semanário. Ficou até Novembro de 1964, quando partiu para a Beira para transformar o "Notícias da Beira" em um diário.
Estas primeiras linhas só para dar introdução à informação sobre o presente que recebi de uma pessoa que me é muito querida, o Vitor Adrião Rodrigues. Este me fez chegar às mãos a encadernação, em quatro volumes, das edições da Voz de Moçambique que vão de 28 de Fevereiro de 1963 a 15 de Janeiro de 1966. Esta relíquia pertencia ao seu irmão, o advogado Carlos Adrião Rodrigues, que faleceu em Fevereiro de 2011.
Achou o Vitor Adrião Rodrigues que eu merecia ter a emoção de folhear estes exemplares, descobrindo neles textos do Gouvêa Lemos como de outras grandes feras que foram alguns dos seus contemporâneos. Entre eles o próprio Dr. Adrião Rodrigues, que em dupla com a sua esposa Quina, foram grandes amigos e companheiros do casal António e Madalena Gouvêa Lemos.
Deste material pretendo colocar aqui no blogue os textos do Gouvêa Lemos que estejam inéditos neste espaço. O primeiro que identifiquei, logo na primeira edição de 28 de Fevereiro de 1963 é uma das crónicas que mais aprecio dele: “Negrófilos e Negrófobos”, que no seu estilo irónico e sarcástico trata da qualificação que algum reaças que lhe fez sobre ser ele um negrófilo. Este texto já foi editado aqui neste espaço no dia 14 de Outubro de 2012 e pode ser acessado pelo link http://gouvealemos.blogspot.com.br/2012/10/negrofilos-e-negrofobos.html.
Do material pretendo ainda montar um completo índice dos títulos das manchetes de cada uma das edições, por data, identificando os seus autores. Existem alguns textos e reportagens não assinadas que também farão parte do índice. Alguns destes textos, pelo estilo da sua escriba, percebem-se serem do GL. Os que eu tiver informações concretas que são de fato dele, assim serão identificados tendo a fonte da informação. Ainda estarei avaliando onde disponibilizarei este índice para que os leitores possam ter acesso e assim, eventualmente, me solicitem que edite textos que lhes sejam de interesse.
Pretendo ainda, via blogue “Lanterna Acesa 2” (http://lanternaacesa2.blogspot.com.br/), editar as propagandas que aparecem nas páginas da “Voz de Moçambique” neste período, A ideia é catalogar em quatro  grupos: Cigarros, Bebidas (Refrigerantes e Cervejas), Carros e Outros (comércio e indústria no geral).
Tudo isto na minha velocidade, sem compromissos de prazos, mas com o compromisso de dividir com o máximo de leitores parte da obra jornalística do Gouvêa Lemos, como disponibilizar parte da história do jornalismo luso-moçambicano que ele e outros seus contemporâneos fizeram parte.
O restante virá como sobremesa.


Zé Paulo

domingo, 4 de agosto de 2013

A carta que nunca chegou...

António Trindade Martins, em meados de Setembro de 1967, aos 20 anos de idade, partiu de Moçambique com destino a Lisboa para depois ir para a França frequentar um curso de jornalismo.
Na sua ficha da PIDE, em 17/09/1968, já estava registrado que “Consta que tem ideias políticas comunistas, suspeitando-se que pretende ir para a Hungria, a fim de ali continuar o curso de jornalista."
Em 18/10/68 a correspondência enviada por António Martins a Gouvêa Lemos já era escrita a partir de Budapest. Mais tarde, em 1970 aos 23 anos de idade, já na Suécia acaba por conseguir exilio politico, após ameaças de expulsão deste país, através de apoios de organizações como a Amnistia Internacional.
O mesmo havia se ausentado do território português sem servir o exército, sendo dado pelo governo português como desertor.
Em Novembro de 1968 o Ministério do Exército já havia formalizado pelo ofício 1782/SC a solicitação para a captura do mesmo, que foi acatada pela PIDE através da O.S. 325/68.
As correspondências enviadas a Moçambique aos seus familiares e amigos, como Gouvêa Lemos, como o inverso, eram capturadas pela PIDE. Nessa ocasião, por uma destas correspondências, a PIDE na Beira abriu um novo processo de investigação aparecendo o Jornalista junto ao “opositor” e seus familiares como fichados.
Abaixo transcrevo uma das suas cartas que nunca chegou ao GL. Palavras que ao mesmo tempo passavam otimismo em relação ao seu futuro, passavam também as saudades de amigos e familiares.
Desta história podemos retalhar um monte de experiências e percepções, mas a maior delas, me parece, é o reforço de que um estado ditatorial e/ou ambientes de guerra induz o jovem a amadurecer precocemente.


Transcrição da carta...

Budapest, 18 /10/1968.
Caríssimo Gouvêa Lemos,
Após cerca de um ano de silêncio - e depois de ter recebido a sua carta (perdoe-me!) volto a escrever-lhe duas linhas, desta vez não de Paris, mas de Budapest, via Paris, para lhe enviar o meu grande abraço.

Estou aqui há cerca de duas semanas. Havia-me candidatado a uma bolsa de estudo para Economia Política em Paris e concederam-me.
Tive hoje a minha 3ª. aula de húngaro. Note-se que chamo aula a um dia de aulas que compreende entre a 6 e 7 horas !
O 1º. ano é, pois, carregado à aprendizagem da língua. Depois, será mais 4 anos para o curso. Portugueses somos 5 + 1 moça.  Há ainda angolanos (9 a 10), moçambicanos (6 a 7) e guineenses (9 a 11). Estão em regra geral cursando especialidades técnicas. Cada um deles receberá no fim do curso uma preparação militar. Quanto a nós, portugueses, a nossa valorização é puramente cultural. Estou imensamente satisfeito porque consegui, enfim, a minha chance de fazer algo por mim para que porem depois fazer melhor pelos outros.
Estou-lhe a escrever de um cafezinho muito discreto que fica a 10 minutos do meu colégio. Terminei as aulas, ??????? e estou à espera da minha “professora”. O húngaro é extremamente fechado mas eu ao fim de uma semana encontrei uma professora muito competente...
Gostaria imenso de saber algo sobre si, sobre toda essa gente, sobre o nosso jornal ! Há muito que ninguém me escreve daí! Da minha família há muito que também não sei de nada! Escreva-me, pois, por 2 ou 3 linhas que sejam, para a direção do meu tio em Paris. Ele tem instruções sobre correspondência com território português.
Receba pois um abraço trans-continental, trans-cortina-de-ferro, trans-oceânico do amigo que não se esquece de si.
                                  Sinceramente,
                                  Assinado....

P.S.: A sua operação, como correu? A D. Madalena como está? Os mais pequenos? Um abraço a todos, bem como à gente do N. B. e de uma maneira geral a todos os contatos da Informação.