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domingo, 17 de janeiro de 2010

UMA PONTE FEZ ACORDAR A ILHA DA TEIMOSIA

Por Gouvêa Lemos (em 1967)


Desejada há quatrocentos anos, a ponte nasceu tarde — é o que pensam na ilha de Moçambique, alguns dos seus mais lúcidos residentes. Já não é possível deter Nacala. Nacala é um porto propriamente dito, um milagre na costa oriental de África, será infalivelmente a porta do Norte — consideram eles, com algum desgosto. Mas não desistem, mesmo assim; agora, que a ponte existe e já funciona, defendem a idéia do porto de Moçambique e arrancam para uma campanha por uma nova ponte-cais. E se arrancam para uma campanha, aqueles homens da Ilha da Teimosia nunca mais param; teimarão nela, ainda que seja por mais quatrocentos anos — disse-me um deles, com a ironia duma certa descrença.

Pois a ponte, como era de prever, já modificou a vida na Ilha, já começou a influir na fisionomia da cidade, já alterou o seu ambiente repousado e tradicionalíssimo. Muitos são os que assistem ao fenômeno com júbilo desvanecido; outros, porém, enfrentam-no com melancolia, saudosamente.

O contra-senso do sonho

No sonho, ainda que feito realidade, o contra-senso persiste. Assim é que a ponte, inaugurada festivamente no mês passado, com grande multidão a assistir, vivas e discursos, os moleques das marmitas correndo, deslumbrados, com a fome dos patrões atrás dos cavalos nunca vistos que vieram do continente e muitos carros apitando pelas ruas seculares, já dá passagem a camiões que são vistos na carga e descarga desde a Fortaleza ao Crematório dos Baneanes, enquanto um espectacular Ford «Mustang» buzina pela rua dos Arcos, um carro de instrução com os seus dois volantes dá infindas voltas com alunas e alunos, pela Rua 28 de Maio, que vai dar à Rua da Liberdade, onde é a Cadeia, pelo largo de S. Paulo, onde está o palácio dos Capitães-Generais, pela praça Mouzinho de Albuquerque com seu coreto, ou, ainda, pela Ponta da Ilha, lá para o bairro do Areal, até ao Cemitério dos Cristãos. Enquanto isso e o buzinar ferve ecoando pelas ruelas e travessas e os carros pesados esboroam os passeios nas curvas impossíveis, enquanto isso tudo, a gente vai para a Ilha, chegada ao Lumbo de comboio ou de avião, tal qual ia dantes: de barco à vela, o que continua a ser a viagem mais bela que se faz em toda a costa moçambicana.
Logo na gare do caminho de ferro o «capitão» Ali carregou as nossas bagagens antes de lhe respondermos à pergunta «vai para a Ilha?». A caminho da praia formou-se a fila indiana dos seus passageiros, que ele ergueu em seus ombros, um a um, depondo-os cuidadosamente a bordo da lancha «Graças a Deus», que, graças a Deus, tinha uma grande vela não muito esfarrapada e fez uma boa travessia com vento de feição. Além dos repórteres, iam uma velha mulher de vestes garridas à moda da terra, feições nobres e ar respeitável que conversou suavemente com os tripulantes ao longo da hora e meia de navegação; outra mulher mais nova, com a sua filha, pequena e risonha; um rapaz alto, magro, negro retinto, de casaco de coiro e rádio portátil fazendo ouvir, todo o caminho, fados, anúncios, ié-ié, anúncios; além do «capitão» Ali, sentado à ré, com a vara do leme na mão esquerda, havia três marujos divagando sobre os malefícios da ponte.
O mar estava doce, de pequeninas ondas, azul e transparente. Era uma serena manhã e o barco embalava-nos enquanto ao longe se estendia, baixa e longuíssima, a ponte que assim estreávamos, alheia a remoques, indiferente aos barcos à vela, que aqui e além pintalgavam de branco a aguarela magnífica daquela travessia.

E agora, Sulemane?

Desembarcados na praia do Celeiro, ao lado da Mesquita Grande, logo pedimos um táxi; e logo nos acudiram os rique-xós, que ainda são os táxis da Ilha, embora correndo para o fim próximo. Angustiados, também, com a existência da ponte que lança os automóveis na Ilha, em catadupas, os moços dos riquexós não sabem ainda o que vão fazer quando esse transporte finalmente e naturalmente se for abandonando. Tilintando a sua campainha ou batendo a sua tábua, lá vai Sulemane com ligeireza rebocando o turista para a Pousada. Respeita os sinais de trânsito, recentemente colocados em profusão, sobretudo a indicar vias de sentido único e estacionamento proibido, pois um carro toma a rua toda.
Quando cruza com um automóvel, viatura rápida e buzinante — buzina-se muito, para aviso dos peões, ainda por habituar a tamanho tráfego —, Sulemane lança-lhe um olhar de ressentimento, enquanto vai arfando, compassadamente, o seu pequeno motor de 2 tempos, um breve ruído a erguer-se, ténue, sobre o silêncio das rodas de borracha na paz da Ilha. Despachado aquele fortuito freguês, Sulemane descansa o riquexó à sombra, junto dos outros, esperando horas a fio por um cliente nunca mais chegado.
Senta-se, limpa o suor da testa e os outros olham-no interrogativamente, expectantes, como se ele pudesse trazer boas novas dos lados da ponte. Os seus olhos perguntam: — E agora, Sulemane?

A ponte é nossa

Mas a ponte é um dogma. Indiscutível. Mais do que matéria de facto e de concreto, é matéria de fé. Os residentes vão fiscalizá-la, pessoalmente, caminhando até onde está a capela de S. Francisco Xavier e continua o banco de Mousinho sob a árvore enorme e velhíssima. Ali se liga a Ilha com o Sancul, a 5 quilómetros do Lumbo. Conversando com o guarda, à porta da sua guarita, os citadinos olham o fundo da ponte esperando os carros e alegrando-se quando os avistam. Colaboram na cobrança da portagem e dão explicações aos transeuntes. Um peão paga 1$00 por ida e volta; uma bicicleta, 2$00; uma motorizada, 3$00; uma moto, 5$00; um automóvel, 25$00; um autocarro, 60$00; um camião de carga, 100$00. Peso máximo, 10 toneladas. Todos acham bem, assim é que está certo, é para o progresso da Ilha, a ponte é nossa. Daqui para o futuro, tudo será possível, parece dizerem alguns dos indivíduos com quem se trocam impressões sobre a «ordem do dia».
- Agora precisamos dum cais acostável, ao menos para atracarem os navios costeiros — sugere um.
- Água, é o que precisamos de arranjar a seguir — opina outro.
-Corrente alterna, quanto antes — contrapõe um terceiro.
- Um bom hotel, urgentemente — pede alguém.
-O comércio reviverá e a Ilha voltará a dominar o distrito — há quem se atreva a profetizar, entre os elogios ao almirante Sarmento Rodrigues.
- Vamos desenvolver o turismo — é resolução unânime.
Uma coisa é certa: a ponte fez estremecer a velha Ilha de Moçambique e algo de novo e vivificante a acometeu. Naquela relíquia do passado somente se fala de futuro. A estridência dos claxons levanta a poeira de mais de quatrocentos anos na capela de Nossa Senhora do Baluarte, onde dormem navegantes e conquistadores da índia. A história da Ilha foi cortada ao meio por esta ponte.
 
 
Fonte da foto: Blog "Estrada Poeirenta"

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