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quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

0 NATAL DE TODOS NÓS


Hoje, dia 18 de Dezembro de 2013, Gouvêa Lemos faria 89 anos de idade. Sendo também tempos de Natal, reedito o editorial da Voz de Moçambique da semana de 21 de Dezembro de 1963, há exatos cinquenta anos atrás.
Um texto, intitulado de "O Natal de todos nós",  que demonstra a coragem daqueles que naqueles tempos escreviam  em meio e para uma sociedade onde uma grande parcela era o extrato de uma ditadura racista. Um texto limpo, sereno, mas que disfarçadamente - nem tanto - cutucava a ferida, fugindo ainda assim dos censuradores.



EDITORIAL

0 NATAL DE TODOS NÓS



        0 Natal é um facto histórico ocorrido há 1963 anos. De tal forma influenciou a vida humana esse nascimento dum Homem que se chamou Jesus Cristo e os cristãos acreditam ser filho de Deus e o próprio Deus humanizado, que esse acontecimento ocorrido em modesto estábulo, nos arredores duma cidade do Oriente Médio, se transformou não só em causa duma religião, em fonte duma doutrina, em origem dum novo ideário moral e social, mas em símbolo de todos os anseios da Humanidade, em degrau da sua esca­lada para a perfeição, em bandeira do seu progresso — mesmo para os não-cristãos.
Isso tudo se resume e se comprova no facto de o Dia de Natal ser considerado, no mundo inteiro, o Dia da Fraternidade Universal. O Natal faz os ho­mens irmãos.
Param as guerras, guardam-se as armas, esque­cem-se os ódios, porque é Natal; suspende-se a cor­rida que leva a nenhures, no combate sem pausa por ser mais rico havendo mais pobres, para um gesto de generosidade, porque é Natal; recolhe-se a casa, re­encontra-se a família, identifica-se cada um com o ambiente que o cerca vivendo-o intensamente, porque é Natal.
E isto acontece, independentemente de se acre­ditar ou não em que Jesus Cristo era Deus; só porque ele foi um Homem que morreu pelos outros homens; só porque ele é o Herói dos heróis que se sacrificam no altar da redenção dos homens.
Ora, em mais este Natal vivido em Moçambique, precisamente quando nos interrogam graves pergun­tas plantadas na linha do horizonte, o Natal surge-nos como a revelação, a luz que ilumina o caminho, a resposta de todas as questões.
Se Cristo nasceu, viveu e veio a morrer por todos os homens; se veio pregar a fraternidade, o amor e a paz entre todos os homens, se veio garantir que são igualmente filhos de Deus todos os homens; tendo, cada um, a mesma implícita dignidade; se veio verberar os fariseus, que, por se julgarem melhores e su­periores, humilham e exploram os seus irmãos; se a legenda do Natal é uma lição de humildade e se a mensagem de Cristo é de esperança, devemos nós ter fé em que o futuro justificará a nossa esperança desde que saibamos construir esse futuro sobre uma autêntica fraternidade e paz, não só com a ordem mas principalmente com a justiça, reconhecendo em cada ser humano um igual nosso, com as mesmas intrínsecas exigências e os mesmos naturais direitos.
Se, em resumo, conseguirmos que, sempre, cada Natal que passa venha a ser o Natal de todos nós.

Ano IV – No. 101 – 21 de Dezembro de 1963 – Página 3

domingo, 13 de outubro de 2013

O "Caso Tembe"



O suspeito Tembe estava para ser extraditado para a Suazilândia pelo governo português, indo contra a própria legislação de então. Após o GL escrever no seu estilo irônico e contundente a crônica que segue abaixo, as autoridades portuguesas em solo moçambicano mudaram de imediato o discurso e passaram a negar que o Tembe seria extraditado.
O falecido advogado Adrião Rodrigues conta-nos esta passagem no seu blogue "gaudium et spes" no texto intitulado "História do Zeca Russo ou o assassinato de um chefe de polícia" que transcreverei logo após a crônica. Percebe-se um equivoco do Adrião Rodrigues quando fala em ter sido o texto escrito na Tribuna, pois acabei por a identificar no Número 101 da Voz de Moçambique, mas este não prejudica em nada o relato da história de um dos grandes chapas do GL.
Segue então o que interessa!

EDITORIAL

O "CASO - TEMBE"
Ocupou-se o Imprensa diária, largamente, do caso de um tal Fernando Tembe, português, natural de Moçambique, que tendo cometido crime de assassínio na Suazilândia e ali sendo condenado à morte, con­seguiu evadir-se para a sua terra e aqui veio a ser preso, como autor de avultado roubo, no concelho da Matola.
Está, agora, o réu de tão graves acusações sob a alçada das nossas leis, isto é, submetido à Justiça da sua pátria e pode, assim, afirmar-se que Fernando Tembe tem, desta feita, a melhor oportunidade possível de conhecer inteiramente as vantagens de ser português.
De facto, ao atravessar a linha de fronteira entre o país onde estava prestes a ser morto por ter matado e a terra em que viera à luz do mundo e vivera os seus primeiros anos ainda inocentes, o assassino e ladrão transferiu-se do âmbito duma Lei, que reco­nhece ao homem o direito de matar o homem como castigo, considerando o criminoso um elemento deletério  irrecuperável, que é necessário segregar definitivamente  para a luz duma outra Lei mais humana, que teima em ver no homem, por mais baixo que ele desça, um ser humano com um mínimo indestrutível de dignidade, com uma capacidade íntima de se redi­mir, punindo-o mas não o suprimindo, e ao puni-lo o faz sempre com a ressalva de o poder um dia rein­tegrar na sociedade de que presentemente é consi­derado inimigo.
O que vai, então, acontecer a Fernando Tembe? Vai, por certo, ser julgado na sua terra, pelas suas leis, usando, no Tribunal, de todas as garantias que essas mesmas leis lhe consignam; poderá ser conde­nado e, também, à pena máxima; dará, por isso, en­trada num estabelecimento prisional, para cumprir a sentença de viver sem liberdade entre duas e três dezenas de anos. Desde início, agindo sobre ele um moderno sistema jurídico-penal, passará imediata­mente a ser útil ao seu semelhante, pelo trabalho diário, de caracter agrícola ou industrial, ao mesmo tempo que se começa a processar a tarefa lenta da sua recuperação.
Quer dizer que Fernando Tembe, com tão grande dívida para a   humanidade, começará fogo o seu paga­mento, em vez de se transformar simplesmente em mais uma vida perdida, a somar às que ele ceifou. Por isso é que, humanissimamente, a Lei portuguesa não aplica a pena de morte. Porque se baseia na crença em que o homem pode sempre salvar-se e na certeza de que ele não tem direito sobre a vida humana.
Não acontecerá a Fernando Tembe aquilo que, por má informação, chegou a supor-se, isto é, a extra­dição para a Suazilândia, onde cumpriria a pena má­xima, na forca; Isso seria uma abdicação da nossa Justiça, uma subserviência das nossas autoridades e, finalmente, uma desumanidade nada portuguesa.
Se Fernando Tembe é de Moçambique será julgado em Moçambique; se é português, serão olhados os seus crimes à luz das leis portuguesas e, segundo elas, serão punidos.
Não tenhamos dúvidas de que assim vai acontecer.

Ano IV – No. 101 – 2 de Novembro de 1963 – Página 3


Abaixo, retalho do texto de Adrião Rodrigues de 16 de Fevereiro de 2007...

Nessa altura, o nosso grupo (eu, o Eugénio Lisboa, o Rui Knopfli, o Fernando Magalhães, o Zé Craveirinha e outros) colaborávamos ( à borla ), na TRIBUNA cuja redacção era chefiada pelo Gouveia Lemos, que, esse, não trabalhava à borla mas se via à nora para receber o vencimento. A Tribuna era o jornal da oposição, tanto quanto a censura deixava, e funcionava democraticamente. Assim, perante tal boato, o Gouveia Lemos ouviu-me primeiro, como jurista do grupo.Eu expliquei-lhe que essa coisa de entrega administrativa de presos policia a policia de países diferentes não existia no nosso direito e que a sua prática podia transformar a detenção pela policia moçambicana em sequestro, o que seria grave A única medida admissível era a extradição,naquele caso inaplicável, porquanto o Tembe era português e o crime porque seria julgado na África do Sul era punido com pena de morte,contrátia à ordem jurídica portuguesa o que impedia a extradição..Portanto o boato merecia uma notícia desenvolvida ou mesmo um artigo de fundo.O Gouveia Lemos decidiu ouvir ainda o grupo. Todos eramos contra a pena de morte, provavelmente o Tembe era um bandido mas como era português tinha o direito de ser julgado pelos tribunais portugueses não correndo o risco de ser sujeito à pena capital. Assim o Gouveia Lemos escreveria um artigo de fundo, cauteloso na formulação mas intransigente nos princípios. Isto foi deliberado unanimemente pelo grupo, incluído o Gouveia Lemos.. Este escreveu um dos artigos de fundo mais notável da literatura jornalística portuguesa, intitulado “A VANTAGEM DE SER PORTUGUES “, que devia ser dado nas universidades de jornalismo portuguesas.O governador de Moçambique lia com muita atenção a TRIBUNA.Se esta lhe tivesse mandado, como presente uma caixa de Champanhe, ele não ficaria mais contente. Pôs-se de imediato em acção, deu ordens terminantes à policia para nem pensarem em entregar o Tembe aos sul-africanos e fez um desmentido simpático à hipótese avançada pela TRIBUNA e assegurando que o “ português” Tembe não seria extraditado.Ora as policias moçambicana e sul-africanas fartaram-se de entregar prisioneiros uma à outra. Eu, alem dos de ouvir dizer, conheço dois casos concretos: um, o do Álvaro Simões, que depois de julgado por razões políticas e absolvido, em Joanesburgo, foi metido numa carrinha à saída do tribunal, pela policia sul-africana e trazido à força para Lourenço Marques e entregue à PJDE que o submeteu a novo julgamento ; outro foi o caso dos refugiados moçambicanos na SUÁZILANDIA( país independente), levados à falsa-fé por agentes sul-africanos para NELSPRUIT, já na República da África do Sul e daí entregues à PIDE em Lourenço Marques.Mas o governador tinha que dizer aquilo e nós queríamos safar o Tembe da hipótese da forca, pelo que não houve mais polémicas e ele foi julgado e condenado a um ror se anos de cadeia.De modo que em 25 de Abril e em 7 de Setembro de 1974 estavam ambos, Tembe e Zeca Russo, presos em Lourenço Marques.


domingo, 22 de setembro de 2013

Aeroporto Gago Coutinho

Aeroporto Gago Coutinho (fonte: "internet")

está uma idéia feliz, em inaugurar-se a nova es­tação aérea de Lourenco Marques no dia 17 de Ju­nho, comemorando-se a chegada ao Rio de Janeiro dum frágil hidravião mono-motor, sem rádio nem apoio marítimo, sem patrocínios poderosos nem publicidades sensacionalistas. Cha­mava-se o aparelho «Lusitânia», tripulavam - no um senhor piloto Sacadura Ca­bral e um senhor navega­dor Gago Coutinho, sendo que este último ia a expe­rimentar um sextante de sua invenção, com horizon­te artificial, que depois ha­via de ser usado por todos os navegantes.
Também foi uma idéia brilhante, essa de chamar ao nosso campo de avia­ção o Aeroporto Gago Cou­tinho, homenageando o marinheiro e o cientista, o in­cansável geógrafo que tan­to trabalhou em Moçambi­que e do seu trabalho dei­xou valiosos resultados ain­da bem patentes, como se verifica facilmente nos Ser­viços Geográficos e Cadas­trais, como confirmam, à uma, todos os topógrafos e agrimensores de Moçambi­que. Além disso, Gago Cou­tinho sempre ficou ligado a esta tetra pelo sentimento da saudade e a sua pele rugosa de velhinho nunca mais se libertou da lem­brança doce das brisas do Índico.
Vendo bem, Gago Coutinho foi, dos portugueses contemporâneos, a figura melhor representativa das mais positivas qualidades do espírito luso — já se pensou nisso?
Ele era destemido e sá­bio, trabalhador e genero­so, abnegado e tolerante, sedento de universo, famin­to de humanidade, realizando o mundo português num plano tão acima da política e dos negócios, que nunca se apercebeu, por exemplo, de que o Bra­sil era um país indepen­dente. Fronteiras, onde es­tavam elas?/ O Atlântico? ... Mas não era seu, o Atlântico? Não o galgara ele? Não o continuara a vencer, tantas e tantas ve­zes, por ar ou pela superfície, quase até morrer? A língua?... Mas era a mes­ma, senhores! Os amigos, os admiradores, os colegas, os discípulos? Ora, onde os teria ele mais numerosos? No Rio de Janeiro ou em Lisboa? Dir-se-á, em Lis­boa, que Gago Coutinho era muito lisboeta. Pode di­zer-se, no Rio, que era muito carioca. Então? Onde fica a pátria do Almirante?
Felicíssima idéia, essa de darem o nome de Gago Coutinho ao aeroporto de Lourenço Marques. Um  velhinho que ilustrou na Terra a promessa do Evange­lho: os últimos serão os primeiros e os primeiros serão  os  últimos. Morreu famoso e ficou célebre, ainda que vivesse humilhando-se e procurando apagar-se. Podia ter sido um dos notáveis da época, um pre­sidente do conselho de administração. um deputado ou coisa assim, podia ter sido, enfim, tanta coisa, e ficou só oficial de marinha reformado. Mas cidadão do mundo, é verdade: tran­seunte enternecido de ocea­nos; português com pureza, porque despido de idéias de domínio, lavado de di­videndos.
Ele encarnava, sem dúvida, o espirito lusitano. O autêntico. O que pode sub­sistir, porque transcende as contingências históricas.
Agora, que inauguraram a bela estação  aérea de Lourenço Marques  no dia em que passava o 41.0 aniversário   da   travessia do Atlântico  Sul  em  avião e que lhe deram o nome de Gago   Coutinho,  só falta uma coisa para completar a homenagem justa e, até,  o    conjunto arquitectónico da aerogare: a estátua do Almirante,   em   frente do edifício.  Estou  a lembrar-me dum enorme Leonardo da Vinci, que se ergue em frente do moderno aeropor­to de Fiumicino, em Roma. E, embora me tenha habituado a antipatizar com es­tátuas, bustos  e lápides, neste caso, sou pela está­tua.

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano IV, nº 96, 29 de Junho de 1963, p. 12]

Gouvêa Lemos na "Voz de Moçambique"


Depois da sua fase no jornal “Tribuna”, onde exerceu a multi- função de vice-diretor e chefe de redação, Gouvêa Lemos assumiu a redação da “Voz de Moçambique” no inicio de 1963. A sua primeira crônica, nesta fase, foi na edição no. 68, IV Ano, de 28 de Fevereiro de 1963, ainda quando era editada quinzenalmente. A entrada de Gouvêa Lemos na equipe da “Voz de Moçambique” tinha como objetivo assumir a responsabilidade de transformar o jornal em semanário. Ficou até Novembro de 1964, quando partiu para a Beira para transformar o "Notícias da Beira" em um diário.
Estas primeiras linhas só para dar introdução à informação sobre o presente que recebi de uma pessoa que me é muito querida, o Vitor Adrião Rodrigues. Este me fez chegar às mãos a encadernação, em quatro volumes, das edições da Voz de Moçambique que vão de 28 de Fevereiro de 1963 a 15 de Janeiro de 1966. Esta relíquia pertencia ao seu irmão, o advogado Carlos Adrião Rodrigues, que faleceu em Fevereiro de 2011.
Achou o Vitor Adrião Rodrigues que eu merecia ter a emoção de folhear estes exemplares, descobrindo neles textos do Gouvêa Lemos como de outras grandes feras que foram alguns dos seus contemporâneos. Entre eles o próprio Dr. Adrião Rodrigues, que em dupla com a sua esposa Quina, foram grandes amigos e companheiros do casal António e Madalena Gouvêa Lemos.
Deste material pretendo colocar aqui no blogue os textos do Gouvêa Lemos que estejam inéditos neste espaço. O primeiro que identifiquei, logo na primeira edição de 28 de Fevereiro de 1963 é uma das crónicas que mais aprecio dele: “Negrófilos e Negrófobos”, que no seu estilo irónico e sarcástico trata da qualificação que algum reaças que lhe fez sobre ser ele um negrófilo. Este texto já foi editado aqui neste espaço no dia 14 de Outubro de 2012 e pode ser acessado pelo link http://gouvealemos.blogspot.com.br/2012/10/negrofilos-e-negrofobos.html.
Do material pretendo ainda montar um completo índice dos títulos das manchetes de cada uma das edições, por data, identificando os seus autores. Existem alguns textos e reportagens não assinadas que também farão parte do índice. Alguns destes textos, pelo estilo da sua escriba, percebem-se serem do GL. Os que eu tiver informações concretas que são de fato dele, assim serão identificados tendo a fonte da informação. Ainda estarei avaliando onde disponibilizarei este índice para que os leitores possam ter acesso e assim, eventualmente, me solicitem que edite textos que lhes sejam de interesse.
Pretendo ainda, via blogue “Lanterna Acesa 2” (http://lanternaacesa2.blogspot.com.br/), editar as propagandas que aparecem nas páginas da “Voz de Moçambique” neste período, A ideia é catalogar em quatro  grupos: Cigarros, Bebidas (Refrigerantes e Cervejas), Carros e Outros (comércio e indústria no geral).
Tudo isto na minha velocidade, sem compromissos de prazos, mas com o compromisso de dividir com o máximo de leitores parte da obra jornalística do Gouvêa Lemos, como disponibilizar parte da história do jornalismo luso-moçambicano que ele e outros seus contemporâneos fizeram parte.
O restante virá como sobremesa.


Zé Paulo

domingo, 4 de agosto de 2013

A carta que nunca chegou...

António Trindade Martins, em meados de Setembro de 1967, aos 20 anos de idade, partiu de Moçambique com destino a Lisboa para depois ir para a França frequentar um curso de jornalismo.
Na sua ficha da PIDE, em 17/09/1968, já estava registrado que “Consta que tem ideias políticas comunistas, suspeitando-se que pretende ir para a Hungria, a fim de ali continuar o curso de jornalista."
Em 18/10/68 a correspondência enviada por António Martins a Gouvêa Lemos já era escrita a partir de Budapest. Mais tarde, em 1970 aos 23 anos de idade, já na Suécia acaba por conseguir exilio politico, após ameaças de expulsão deste país, através de apoios de organizações como a Amnistia Internacional.
O mesmo havia se ausentado do território português sem servir o exército, sendo dado pelo governo português como desertor.
Em Novembro de 1968 o Ministério do Exército já havia formalizado pelo ofício 1782/SC a solicitação para a captura do mesmo, que foi acatada pela PIDE através da O.S. 325/68.
As correspondências enviadas a Moçambique aos seus familiares e amigos, como Gouvêa Lemos, como o inverso, eram capturadas pela PIDE. Nessa ocasião, por uma destas correspondências, a PIDE na Beira abriu um novo processo de investigação aparecendo o Jornalista junto ao “opositor” e seus familiares como fichados.
Abaixo transcrevo uma das suas cartas que nunca chegou ao GL. Palavras que ao mesmo tempo passavam otimismo em relação ao seu futuro, passavam também as saudades de amigos e familiares.
Desta história podemos retalhar um monte de experiências e percepções, mas a maior delas, me parece, é o reforço de que um estado ditatorial e/ou ambientes de guerra induz o jovem a amadurecer precocemente.


Transcrição da carta...

Budapest, 18 /10/1968.
Caríssimo Gouvêa Lemos,
Após cerca de um ano de silêncio - e depois de ter recebido a sua carta (perdoe-me!) volto a escrever-lhe duas linhas, desta vez não de Paris, mas de Budapest, via Paris, para lhe enviar o meu grande abraço.

Estou aqui há cerca de duas semanas. Havia-me candidatado a uma bolsa de estudo para Economia Política em Paris e concederam-me.
Tive hoje a minha 3ª. aula de húngaro. Note-se que chamo aula a um dia de aulas que compreende entre a 6 e 7 horas !
O 1º. ano é, pois, carregado à aprendizagem da língua. Depois, será mais 4 anos para o curso. Portugueses somos 5 + 1 moça.  Há ainda angolanos (9 a 10), moçambicanos (6 a 7) e guineenses (9 a 11). Estão em regra geral cursando especialidades técnicas. Cada um deles receberá no fim do curso uma preparação militar. Quanto a nós, portugueses, a nossa valorização é puramente cultural. Estou imensamente satisfeito porque consegui, enfim, a minha chance de fazer algo por mim para que porem depois fazer melhor pelos outros.
Estou-lhe a escrever de um cafezinho muito discreto que fica a 10 minutos do meu colégio. Terminei as aulas, ??????? e estou à espera da minha “professora”. O húngaro é extremamente fechado mas eu ao fim de uma semana encontrei uma professora muito competente...
Gostaria imenso de saber algo sobre si, sobre toda essa gente, sobre o nosso jornal ! Há muito que ninguém me escreve daí! Da minha família há muito que também não sei de nada! Escreva-me, pois, por 2 ou 3 linhas que sejam, para a direção do meu tio em Paris. Ele tem instruções sobre correspondência com território português.
Receba pois um abraço trans-continental, trans-cortina-de-ferro, trans-oceânico do amigo que não se esquece de si.
                                  Sinceramente,
                                  Assinado....

P.S.: A sua operação, como correu? A D. Madalena como está? Os mais pequenos? Um abraço a todos, bem como à gente do N. B. e de uma maneira geral a todos os contatos da Informação.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

PIDE - Ficha aberta em 15 de Novembro de 1968.

Por uma carta escrita em Budapeste e enviada a Gouveia Lemos a partir de Paris, a PIDE abriu-lhe mais uma ficha a 15 de Novembro de 1968. Uma carta que nunca lhe chegou às mãos...


domingo, 10 de fevereiro de 2013

Morre mais um pedaço da história da imprensa moçambicana?


Ser filho do Gouvêa Lemos deve ajudar a ter um sentimento de injustiça pela memória curta de grande parte de moçambicanos e portugueses em relação à sua importância no jornalismo luso-moçambicano nos tempos de Moçambique colônia.
Entendo que as novas gerações não saibam quem foi o jornalista e assim não conheçam a sua história. Mas me entristece que pessoas ligadas ao jornalismo moçambicano, e português, alguns que foram ainda seus contemporâneos, não busquem colocar o seu nome em evidência pelo menos quando as circunstancias assim apontam. O mundo anda, nós envelhecemos, e assim nos últimos anos temos perdido importantes personagens da imprensa e da literatura que foram testemunhas vivas  e atuantes de uma ditadura colonial e que com as suas penas e tinteiros digladiaram com as injustiças daqueles tempos. As lutas eram tão intensas que as suas necessidades pessoais, e das suas famílias, ficavam quase sempre em segundo plano. Não morreram com balas no peito, mas perderam anos das suas vidas pelos ideais em que acreditavam.
Gouvêa Lemos foi um desses homens. Um homem justo. Um homem que valorizava os homens. O poeta José Craveirinha, o fotógrafo Ricardo Rangel foram dois dos muitos nomes que tiveram o privilégio de conviverem profissionalmente com o chapa Gouvêa Lemos, como Craveirinha o tratava, e com o Mestre, como Ricardo Rangel o reverenciava.
Tenho o blogue “Jornalista Gouvêa Lemos” como um espaço para matar saudades do que pouco tenho acesso das suas crónicas e como uma humilde forma de dividi-las com leitores que por algum motivo tenham interesse de voltar ao passado e entender como homens como Gouvêa Lemos conviviam com a realidade daqueles tempos. Nos três anos que eventualmente atualizo algum material, foram raras as vezes que fiz referencias ao Jornalista. O foco é sempre a reedição de alguns dos seus textos, e quando busco fazer algum comentário o faço como os demais leitores, no espaço apropriado a leitores.
Hoje, pela ocasião do falecimento do seu contemporâneo Fernando Magalhães e por comentários que me fizeram chegar sobre um texto editado no jornal SAVANA, de Maputo, acabei por sentir necessidade de fazer algo como um desabafo, aproveitando para me despedir mais uma vez do meu Pai quando digo adeus a um seu amigo e colega de profissão. Cada vez que um dos seus chapas se vai deste mundo, sinto um pouco mais a perda do Pai. Creio que isso esteja relacionado ao tê-lo perdido muito miúdo. Tinha eu os meus 11 anos de idade, e como filho era ele, como todos os pais, o meu Pai Herói. Dali para a frente conheci o Pai e o Jornalista pelos seus amigos e o Pai pela minha Mãe.
No livro 140 ANOS DE IMPRENSA EM MOÇAMBIQUE, editado pela AMOLP em 1996 com a coordenação de Fátima Ribeiro e António Sopa, Fernando Magalhães foi escolhido para escrever sobre o seu amigo Gouvêa Lemos. Como homenagem a ambos, transcrevo aqui algumas das suas frases do texto que intitulou como “GOUVÊA LEMOS: O HOMEM QUE QUERIA SER JORNALISTA”:

“Conheci o Gouvêa Lemos no início dos anos 60. Ele era chefe ou subchefe de redacção do Notícias e eu tentava a minha carreira de jornalista na muito desprezada “Reportagem” onde tínhamos a obrigação de relatar o que se passava na capital de Moçambique (Província). Fazia portanto a “tabela de marés”, a meteorologia,...”
“A Censura lia tudo, cortava o que queria e era necessário saber escrever para a censura. Gouvêa Lemos, irônico, impunha-nos o respeito pelas técnicas do jornalismo. Destruía com o seu sarcasmo os narizes de cera que os redactores prestigiados queriam impor. Para ele os rumores iam directos para o cesto dos papéis ou quando muito podiam ser tratados em crônicas até porque aquele era um tempo de muitos rumores e poucas notícias permitidas.”

“Não tinha sido em vão que ele passara parte da sua juventude a trabalhar em jornais brasileiros como o Estado de São Paulo. Só que por aqui a Censura dava-lhe poucas hipóteses."
“Mas para Gouvêa Lemos a técnica do jornalismo era sagrada. Foi ele o primeiro a meter-me na cabeça uma das regras de ouro do jornalismo anglo-saxónico: os factos são sagrados e as opiniões livres.”

“Murmurando contra o cinzentismo do Notícias chegamos a 1962 e quando eu já me preparava para escolher uma profissão mais apaixonante o Gouvêa Lemos convidou-me para fazer parte dos quadros de um novo jornal que seria uma pedrada no charco: a Tribuna. A sete de Outubro de 1962, numa noite incrivelmente quente em que ninguém ligado ao jornal dormiu, saiu o primeiro número. Claro que estivera para sair alguns dias antes. Mas tal como hoje amontoavam-se as insuficiências, algumas más vontades paralisadoras e um facto muito importante: a coordenação do caos de idéias e teimosias de um grupo numeroso de gente de boa vontade que sabia de tudo, menos do que é fazer um verdadeiro jornal.

“Coube ao Gouvêa Lemos ser o homem que organizou o caos de grandes idéias e enormes boas vontades transformando esse caos no que a Tribuna foi. Um jornal moderno tão bom como os que faziam nas grandes capitais do mundo e como verdadeiro jornal reflectia o mundo e o Moçambique do momento."

“Um jornal que soube apanhar de surpresa as autoridades metropolitanas que nem sonhavam ser possível que por cá houvesse conhecimentos técnicos e atrevimento para se fazer um jornal assim. Um jornal que aproveitava as hesitações e ambigüidades do regime e as tentativas de abertura de homens avançados como o Ministro do Ultramar Adriano Moreira ou o Governador Sarmento Rodrigues, para dar notícias e ter opinião.”

“Foi até ao fim um mestre jornalista. Ao mesmo tempo um idealista e um técnico pragmático. Lembro-me de uma vez lhe ter perguntado na Beira (estávamos no fim dos anos 60) se afinal ele era português ou moçambicano. Disse-me que se estava nas tintas para isso. Que era um jornalista honrado.”

A imprensa moçambicana faz justas homenagens ao jornalista Fernando Magalhães que tanta importância teve para o seu jornalismo , mas derrapa mais uma vez ao deixar o nome de Gouvêa Lemos, e de outros, de fora de referências a passagens como o do jornal “A TRIBUNA” que na década de 60 foi um projeto audacioso a que o Fernando Magalhães se refere no seu texto.
Não li mas soube por um amigo, residente em Maputo, que o jornal SAVANA publicou no último dia 8 de Fevereiro um texto dedicado a este jornalista e o relaciona à história do jornalismo moçambicano com a sua passagem pela “TRIBUNA” fundada pelo João Correia Reis, onde em mais um exemplo a imprensa atual de Moçambique se mostra injusta com este capítulo tão importante da sua história.
E ironicamente falando, nem a PIDE na época via esse tema dessa forma. A 2 de Outubro de 1962 um inspetor da PIDE dava conhecimento ao seu subdiretor o nascimento deste novo jornal em território moçambicano. O documento identifica neste primeiro documento quatro nomes: o de Frederico Madureira como diretor, o do João Reis como editor e o de Gouvêa Lemos como chefe de redação. Fala ainda no nome de José Baptista Oliveira como sendo responsável por contratar na Metrópole pessoal para a tipografia.
Em Outubro de 1962 é expedido pela PIDE outro documento confidencial onde além destes nomes aparecem os nomes de Ilídio José da Rocha, Adérito José Lopes, Domingos Augusto Vieira Azevedo e José João Craveirinha. Por algum motivo os nomes de Gouvêa Lemos, do Ilidio Rocha e do Domingos Azevedo estão sublinhados a vermelho.
Anexarei estes documentos para que possam ser apreciados como parte da história de Moçambique colonial.
Tenho a convicção que os profissionais do jornalismo moçambicano não haveriam de perder, e sim a ganhar, se buscassem conhecer melhor a história de Gouvêa Lemos que é componente de grande importância da história do qual fazem hoje parte.
Não nos devemos esquecer que o hoje não existe sem o ontem. Quando se esquece existe grande possibilidade de se ficar patinando no que seria o futuro.
Abaixo coloco as cópias dos documentos da PIDE a que me referi. Fico com o compromisso de em outra oportunidade de colocar neste blogue outros documentos relacionados ao cidadão luso-moçambicano e jornalista Gouvêa Lemos.