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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

“A terminologia no Jornalismo”


Jornal Tribuna – 1962

O monhé* U Thant e o mulato Bunche são expressões que leio em artigos de jornal cá da terra. Artigos sobre um problema de política internacional, que tal é o da intervenção da ONU na província congolesa do Catanga. Não sou amigo, parente ou inimigo do Sr. U Thant nem do Sr. Bunche, como não sou amigo, parente ou inimigo do Sr. Tshombé ou do Sr. Adenauer, por exemplo. Falando de personalidades como estas, em artigo de jornal, só há uma coisa que eu devo ser; jornalista.
Assim, o que acontece é que mesmo quando pessoalmente eu não simpatizasse com o papel desempenhado por Tschombé ou com a política representada por Adenauer, nunca os chamaria em crônica política, respectivamente, moleque ou boche**, por exemplo. Até nem soava bem. E quando um jornalista se dedica ao comentário político deve abster-se de insultar pessoas que, para mais, nem o conhecem, e portanto, nem lhe podem partir a cara.
Confrange-me ver praticar-se jornalismo assim. Ainda para além do que se pode simplesmente ter como intuição ou daqui com sensibilidade dos leitores, até acontece que pude aprender umas coisas desta atividade que é a minha profissão, e lembro-me bem de me ter sido ensinado que o comentarista político deve manter, antes de tudo, a sua serenidade de espírito, indispensável para atingir a imparcialidade obrigatória e conseguir a observação justa.
Ora, quando um sujeito se ocupa de política internacional e, logo de saída, adjectiva desrespeitosamente importantes personalidades intervenientes nos factos que vai focar, ele pode estar disposto a tudo, até a alistar-se como voluntário desinteressado monetàriamente (para não ser mercenário), mas não está a fazer jornalismo.
Em nome de quê, gostava eu de saber, com que autoridade moral é que um sujeito em Lourenço Marques, publica artigos a chamar monhé a U Thant e mulato a Bunche (revelando aqui mesmo um belo racismo de muito nível), só porque não está de acordo com a atitude assumida pelas Nações Unidas no Catanga?
Despreza-se o público para quem se escreve, por duas formas; porque, em vez de esclarecimento de um problema se servem insultos; quer dizer que onde se devia ajudar o leitor a formar uma opinião, se solicita a irritação, a exaltação, a raiva; e porque, traindo um dever da Imprensa, se baixa a terminologia a um plano de cavalariça, esquecendo que é no jornal, precisamente, que uma grande parte da população vai colher elementos para o enriquecimento da sua linguagem.
Embora já estivesse habituado a ler por aí, segundo uma técnica de títulos muito inusual, palavrões em parangonas, insultos a colunas, que aliás deve ter causado grandes perturbações nos areópagos internacionais e dado amargos de boca aos governantes das maiores potencias... desta vez tive mais pena, confesso, porque a coisa foi lida no “Notícias”.
Não é jornalismo tal pratica. E até nem é conveniente, pois isto de políticas é coisa de grandes contingências e reviravoltas e nunca se pode jurar que não venham necessidades da mesma ordem que orientam hoje as remessas de lama, a impor aspersões de água de rosas sobre as mesmíssimas cabeças. Nisto de políticas, a gente nunca sabe no que dá.
Além de que não é bom generalizar o hábito de homens dos jornais chamarem nomes feios em função de aspectos físicos, o que pode levar a resultados desastrosos.



Notas do António Maria: 


*Monhé - adjetivo em parte ainda usado - em Portugal e todas as ex colônias africanas - para identificar as pessoas de origem indiana ou paquistanesa.

** Boche - adjetivo em parte ainda usado - em Portugal e todas as ex colônias africanas - para identificar as pessoas de origem germânica. (A palavra Boche tem a sua origem na marca industrial alemã, conhecida mundialmente; Bosch)

Ambos adjetivos mencionados acima, apesar de serem irrefutavelmente depreciativos na sua origem, são usados também algumas vezes na linguagem popular entre amigos. Assim como no Brasil se usa ainda os termos; “nêgo”, “morena”, “japa” ou “galego”, sem se ter a intenção de ofender alguém, ou estar diretamente ligado com a origem racial da pessoa a que se refere. Em Moçambique usa-se também a palavra “monhé” para descrever um “comerciante astuto” . E “boche”, define alguém “disciplinado” e voltado para a “qualidade” do que se faz.

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