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sábado, 7 de novembro de 2009

Retalho do programa radiofônico “Escola Nova” de Lisete Lopes


PERGUNTA: O que pensa da criação dum jornal infantil e qual a orientação a dar-lhe?

RESPONDE Gouveia Lemos

Toda a gente concorda que em qualquer literatura especificamente infantil, deve-se orientar pelo futuro dos homens em potencial, a quem se dirige, cultivando neles valores positivos do espírito.

As crianças estão a brincar no átrio da sociedade em que hão-de cumprir a sua vida; pois então que a literatura infantil as integre harmonicamente nessa sociedade, fazendo-as amar o próximo, estimar a paz, buscar o progresso da Humanidade.

Posta esta hipótese de ser editado um jornal infantil em Moçambique, decorre daquele pressuposto, que essa publicação terá de ser, além de indispensável divertimento e jogo intelectual à medida do entendimento dos seus leitores, algo mais que um jornal de quadradinhos, igual a tantos outros, importados, que por aí se vendem, tipo “stantard”, estereotipados na tipografia e no contexto. Para fazer mais um desses e gritar depois que o prefiram porque é local, vale mais estar quieto. Julgo que um jornal para as crianças de Moçambique tem um importante papel a cumprir e só poderá cumprir se for defendido, logo ao nascer, de certas deformações correntes, há muitos anos.

(Lembro-me, a propósito duma certa manhã de sábado, em que o meu filho mais velho chegou da Escola, impressionadíssimo e confuso, por causa duma história de piratas, que fora o tema duma prédica).

Ora, se tal jornal aparecer – e oxalá que sim – deverá colocar o seu leitor num pedestal, onde só cheguem sentimentos como a fraternidade, sobretudo, para além de raças. (Serei mais claro, pois ninguém me acusará de racista, pelo meu anti-racismo). Um jornal infantil de Moçambique não pode conter, nas suas histórias, exclusivamente, heróis de caracóis loiros, como não deve inserir, subsidiariamente, histórias para africanos. É necessário que se crie uma literatura infantil bem nossa, isto é, que reflita esta sociedade que constituímos e sirva verdadeiramente à sociedade que pretendemos desenvolver.

Que em cada pequeno leitor se fecunde a matriz da igualdade e não se consinta no aparecimento de pragas como os preconceitos de que a Humanidade, tanto a custo e com derramamento de tanto sangue, se vem pelos séculos libertando.

Penso que, entre nós, a preocupação máxima, absorvente, de todos os instantes, na educação dos nossos filhos - que não são poucos mil, mas alguns milhões – deve ser essa. Portanto, na nossa quiçá nascente literatura infantil, o primeiro artigo dum programa de trabalho será relativo a essa preocupação, para que os meninos não venham a julgar-se, na melhor das hipóteses, protectores em vez de companheiros, padastros em vez de irmãos.

E outra preocupação deve ser a de não acarinhar e exaltar instintos bélicos nas crianças; nada de armas, basta de tiros.

Fale-se-lhes num mundo de paz, sem pistolas nem bombas, com toda a gente feliz, e explique-se-lhes que isso é possível, se todos os homens quiserem.

Sei que não disse nada relevante sobre literatura infantil, na generalidade; mas acredito que, hoje, não será inteiramente inútil dizer estas coisas que penso, sobre o futuro das crianças de Moçambique.

[Jornal Notícias –  em fins da década de 50 ou incios da década de 60]

3 comentários:

  1. Essa imagem quase severamente humanista, como ele percebia a importância de se investir na literatura infantil, sentíamos também em casa. Onde "cada livro tem a sua hora e idade para ser lido, pois senão compreenderes, for aborrecido ou ficares chocado, acabarás por perder o interesse de ler"

    Lembro-me de ter ouvido essas palavras um dia, quando ele não me permitiu ler um livro que eu havia tirado da estante dele.

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  2. Não há nada que leia do GL que não me deixe algum recado, até mesmo quando não sei exatamente o que lhe fez escrever certa crónica.
    Esta, particularmente, me passa muito de como o Pai via o mundo, especialmente como ele projetava Moçambique.
    Ele disse:"Sei que não disse nada relevante sobre literatura infantil, na generalidade; mas acredito que, hoje, não será inteiramente inútil dizer estas coisas que penso, sobre o futuro das crianças de Moçambique."
    Sim, ele não falou tanto, ao meu ver, de literatura infantil e sim de se plantar conceitos que faltavam na então sociedade moçambicana, onde a literatura infantil podia ser apenas mais uma ferramenta para ajudar que isso fosse feito.

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  3. esse senhor era um homem corajoso - uma pessoa que se expressava, expunha ideias extremamente ousadas para a sua época em meio a uma sociedade (dos que liam), quase na sua totalidade, hostil a esses pensamentos

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