Achei pertinente dividir como mais gente, especialmente quando
tenho amigos que mergulham na poesia, seja como poetas, seja como mantedores da
poesia de quem já esteve entre nós, nos fazendo buscar na memória o que outrora
já lemos, ou do que não havíamos lido ainda por relaxo ou por falta de
oportunidade.
Zé Paulo G. Lemos
ACERCA DE POESIA
Por ALBERTO LACERDA
Quando da primeira leitura de
poemas realizada entre nós por Alberto Lacerda, no Salão de Conferências da
Câmara Municipal e sob o patrocínio da nossa Associação, proferiu o Poeta, à
guiza de intróito, alguns comentários pertinentes acerca do fenómeno poético.
Maugrado o carácter aparentemente ligeiro e necessariamente circunstancial de
que se revestiram as palavras, a meia dúzia de conceitos cristalinos que deixou
adivinhar e que hoje quase ninguém lembra a propósito de Poesia, pareceram-nos
de tanta importância, que insistimos com o Poeta para que nos autorizasse a sua
publicação. Esse o texto que oferecemos aos nossos leitores. — N. da. R.
Não vou dissertar sobre poesia,
sobre artes poéticas, correntes poéticas nem sobre poetas. Ficará isso
provavelmente para outra ocasião. Hoje eu quis exclusivamente ler perante alguns
amigos, amigos meus ou da poesia, poemas que eu amo, numa escolha possível
entre centenas de outras escolhas. Na estrutura do meu programa há apenas um
critério: poesia Todos os poemas que eu vou ler, escolhi-os porque os amo,
porque os considero poesia.
Eu desejava apenas frizar uma
coisa. A poesia necessita de uma atmosfera de liberdade absoluta a poesia
desenvolve-se tão mais plenamente quanto mais a libertarem de espartilhos
políticos, de coacções políticas da esquerda, da direita, do centro, de baixo,
ou de cima. A poesia necessita que a libertem cada vez mais de etiquetas, de
tabus, de calúnias de ordem estética ou pseudo-estética. É preciso acabar de
uma vez para sempre com as guerras do Alecrim e da Manjerona. «Não leia Fulano
porque Fulano é um esteta!» «Não leia Cicrano porque Cicrano não passa dum neo-realista!»
São atitudes perniciosas, estreitas e que só desfocam a verdadeira perspectiva.
Verifico com enorme alegria que
em Moçambique se vai criando uma poesia com características locais, verifico
com alegria ainda maior que não se acha reaccionário que nem toda a poesia que
aqui se faz fale em temas especificamente locais. E símbolo disso a glória
autentica de que o nome de Reinaldo Ferreira tão justamente goza entre nós.
A poesia é uma forma de criação
artística: não é um substituto para a actividade política ou religiosa. Mas a
actividade política ou religiosa também podem ser temas de poesia. Essa a grande
vitória do modernismo, a ilimitação do mundo poético. Não caiamos portanto em
Moçambique no perigo de se dizer: um poeta de Moçambique que não for
intelectualmente um reaccionário e um traidor, só pode cantar a sanzala e a machamba.
Ainda não se caiu nesse perigo, espero que nunca se venha a cair. Cantem-se os
temas nativos se foram sentidos de dentro e não impostos. Mas não se esqueça
nunca a complexidade da vida. A arte exige uma liberdade absoluta e exactamente
por isso exige também uma sinceridade artística absoluta. Não há arte dirigida.
Há artistas que apesar das coacções que se impuseram, ou que lhes impuseram os
vários ditadores políticos e não políticos, foram criando autênticas obras de
arte. Mas criaram-nas apesar dessas coacções. Ezra Pound, fascista confesso,
tem ideias políticas infames e é no entanto um dos maiores poetas do século XX.
Mas mais infames são aqueles que pretendem justificar as suas ideias políticas
deles citando Ezra Pound. Disse Eira Ehrenbure uma vez que se faz arte que se
pode, não a que se quer. Mas há uma obrigação de todo o artista: aprender uma
técnica. A pobre da literatura — como lida com ferramentas de todos os dias, as
palavras — presta-se a imensos equívocos. Assim como é preciso aprender a tocar
piano para se escrever as sonatas de Beethoven ou os prelúdios de Chopin, é
preciso aprender a escrever versos para que um certo encadeamento de palavras
seja poesia. É preciso não enganar o público, é preciso que os críticos não
ajudem a enganar o público, é preciso não cair no sofisma de apodar de esteta,
na acepção decadente dos fins do século XX, aqueles artistas que resolvam os
problemas formais da sua arte. Todos, absolutamente todos que nos encontramos
nesta sala, a humanidade inteira, é artista, é criadora em certo sentido.
Mas é por motivos sobretudo formais, de oficina, de alegria física no fazer, que só uma minoria dentre nós vai além do vago desejo e chega à concretização que se chama poema, sonata, escultura, pintura. A técnica é importantíssima; é dever sagrado de todo o artista ir ao fundo da técnica, saber-lhe todos os segredos. Só assim ele serve a arte. Só assim ele serve o povo. E o povo não é uma entidade abstracta. O povo somos todos nós. O povo é a humanidade inteira, presente, passado e futuro.
Que belo texto do Alberto Lacerda! “Poesia sem espartilhos…”
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