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quarta-feira, 14 de setembro de 2022

O poeta moçambicano Alberto Lacerda na V.M. de 15 de Março de 1963.


Nas releituras da “Voz de Moçambqiue” encontrei este texto que reproduz comentários e conceitos sobre poesia colocados pelo poeta Alberto Lacerda na aberura de uma leitura de poemas patrocinada pela Associação dos Naturais de Moçambique.

Achei pertinente dividir como mais gente, especialmente quando tenho amigos que mergulham na poesia, seja como poetas, seja como mantedores da poesia de quem já esteve entre nós, nos fazendo buscar na memória o que outrora já lemos, ou do que não havíamos lido ainda por relaxo ou por falta de oportunidade.

Zé Paulo G. Lemos

ACERCA DE POESIA

Por ALBERTO LACERDA

Quando da primeira leitura de poemas realizada entre nós por Alberto Lacerda, no Salão de Conferências da Câmara Municipal e sob o patrocínio da nossa Associação, proferiu o Poeta, à guiza de intróito, alguns comentários pertinentes acerca do fenómeno poético. Maugrado o carácter aparentemente ligeiro e necessariamente circunstancial de que se revestiram as palavras, a meia dúzia de conceitos cristalinos que deixou adivinhar e que hoje quase ninguém lembra a propósito de Poesia, pareceram-nos de tanta importância, que insistimos com o Poeta para que nos autorizasse a sua publicação. Esse o texto que oferecemos aos nossos leitores. — N. da. R.

Perguntaram um dia ao poeta Murilo Mendes, que é, como sabem, um católico sincero, se o inferno realmente existia. Murilo respondeu: «Existe mas não funciona». O mesmo se poderia ter quanto às artes poéticas, quanto às teorias da poesia. Existem, mas não funcionam. Felizmente. Há uma coisa, em poesia que funciona, e só uma: a poesia.

Não vou dissertar sobre poesia, sobre artes poéticas, correntes poéticas nem sobre poetas. Ficará isso provavelmente para outra ocasião. Hoje eu quis exclusivamente ler perante alguns amigos, amigos meus ou da poesia, poemas que eu amo, numa escolha possível entre centenas de outras escolhas. Na estrutura do meu programa há apenas um critério: poesia Todos os poemas que eu vou ler, escolhi-os porque os amo, porque os considero poesia.

Eu desejava apenas frizar uma coisa. A poesia necessita de uma atmosfera de liberdade absoluta a poesia desenvolve-se tão mais plenamente quanto mais a libertarem de espartilhos políticos, de coacções políticas da esquerda, da direita, do centro, de baixo, ou de cima. A poesia necessita que a libertem cada vez mais de etiquetas, de tabus, de calúnias de ordem estética ou pseudo-estética. É preciso acabar de uma vez para sempre com as guerras do Alecrim e da Manjerona. «Não leia Fulano porque Fulano é um esteta!» «Não leia Cicrano porque Cicrano não passa dum neo-realista!» São atitudes perniciosas, estreitas e que só desfocam a verdadeira perspectiva.

Ou ainda não se avaliou o espectáculo degradante de artistas da envergadura de um Shoetakovitch ou um Prokofief irem ao banco dos réus por não fazerem arte dirigida? Ou já nos esquecemos do espectáculo degradantíssimo da Alemanha Nazi em relação a tudo, incluindo a arte e os artistas?

Verifico com enorme alegria que em Moçambique se vai criando uma poesia com características locais, verifico com alegria ainda maior que não se acha reaccionário que nem toda a poesia que aqui se faz fale em temas especificamente locais. E símbolo disso a glória autentica de que o nome de Reinaldo Ferreira tão justamente goza entre nós.

A poesia é uma forma de criação artística: não é um substituto para a actividade política ou religiosa. Mas a actividade política ou religiosa também podem ser temas de poesia. Essa a grande vitória do modernismo, a ilimitação do mundo poético. Não caiamos portanto em Moçambique no perigo de se dizer: um poeta de Moçambique que não for intelectualmente um reaccionário e um traidor, só pode cantar a sanzala e a machamba. Ainda não se caiu nesse perigo, espero que nunca se venha a cair. Cantem-se os temas nativos se foram sentidos de dentro e não impostos. Mas não se esqueça nunca a complexidade da vida. A arte exige uma liberdade absoluta e exactamente por isso exige também uma sinceridade artística absoluta. Não há arte dirigida. Há artistas que apesar das coacções que se impuseram, ou que lhes impuseram os vários ditadores políticos e não políticos, foram criando autênticas obras de arte. Mas criaram-nas apesar dessas coacções. Ezra Pound, fascista confesso, tem ideias políticas infames e é no entanto um dos maiores poetas do século XX. Mas mais infames são aqueles que pretendem justificar as suas ideias políticas deles citando Ezra Pound. Disse Eira Ehrenbure uma vez que se faz arte que se pode, não a que se quer. Mas há uma obrigação de todo o artista: aprender uma técnica. A pobre da literatura — como lida com ferramentas de todos os dias, as palavras — presta-se a imensos equívocos. Assim como é preciso aprender a tocar piano para se escrever as sonatas de Beethoven ou os prelúdios de Chopin, é preciso aprender a escrever versos para que um certo encadeamento de palavras seja poesia. É preciso não enganar o público, é preciso que os críticos não ajudem a enganar o público, é preciso não cair no sofisma de apodar de esteta, na acepção decadente dos fins do século XX, aqueles artistas que resolvam os problemas formais da sua arte. Todos, absolutamente todos que nos encontramos nesta sala, a humanidade inteira, é artista, é criadora em certo sentido.

Mas é por motivos sobretudo formais, de oficina, de alegria física no fazer, que só uma minoria dentre nós vai além do vago desejo e chega à concretização que se chama poema, sonata, escultura, pintura. A técnica é importantíssima; é dever sagrado de todo o artista ir ao fundo da técnica, saber-lhe todos os segredos. Só assim ele serve a arte. Só assim ele serve o povo. E o povo não é uma entidade abstracta. O povo somos todos nós. O povo é a humanidade inteira, presente, passado e futuro.

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