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quarta-feira, 2 de junho de 2010

PARA UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE (03)

Negros Mercedes-Benz são lavados sob alpendres das moradias, no Sommerchield; fardas de impedidos, paletós de motoristas, fardetas de moleques passam as cancelas de ferro. O pão já veio. Saem meninos para a escola. Lá para a rua Nevala, comanda um clarim com voz de galo. O Grêmio Civil ainda tem os vidros embaciados e já o sol toma banho na baía. É verdade: na baia, convém que um navio apitasse. Embora a chuva que há-de vir já traga, à cidade inteira, os silvos das locomotivas em manobras. E uma ambulância corra, tão cedo, com a sirene a gritar, pela Pinheiro Chagas, levando a mulher que ia tendo a criança na rua. Suponho que já chega de música de fundo, com a ubíqua motorizada na bateria.

*

Cai toda a gente no afã de ganhar a vida consumindo outro dia. Tilintaram relógios de ponto. Chaminés largaram uns fumos de indústria. Caixeiros iniciaram o eterno dobra-e-desdobra das peças de tecido. E as barcas da Catembe vêm e voltam , carregando e descarregando gente, cestas e cangarras. Nos mercados municipais ou furtivos agitam-se figurantes em cenário de natureza morta. Compradores e vendedeiras fazem torneios de voz alta. A bela Juju ainda na cama, acorda e boceja; só agora dá conta, em câmara lenta, da noite que foi a noite passada. – Ahahnnn ...., foi demais, ela própria confessa, e enovela-se em busca do sono, que ao fugir, a deixa nua diante de si. . Vamos fugir da Juju, que ela vai chorar.

*

Entretanto, lembremo-nos dela, ingenuamente fingindo de ingênua-bardot, a passar na Avenida da República, rentinha às mesas do Continental, entre as cinco e cinco meia da tarde. Não há lugares para mais ninguém nem é preciso haver, que estão lá todos do costume. As pessoas falam uma com as outras, não se olhando, pois o olhar é preciso para quem passa. As conversas... ora para que falar das conversas? Não interessam e nem podem interessar até porque, se interessarem, quem as apreciaria mais não seriam os interlocutores mas aquele sujeito da mesa ao lado; quem é ele, que faz ele, que está sempre na mesa do lado?...

(continua...)

Foto: Av. da República, Lourenço Marques na década de 60. Foto apanhada no Blog "Rua dos dias que voam"

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5 comentários:

  1. Micky Diogo da Silva2 de junho de 2010 às 22:08

    É bom demais...Devias publicar um livro compilado com as crónicas do tio, emolduradas com as bonitas imagens da nossa terra. É quase OBRIGATÓRIO que isso aconteça! Não pode ficar só (?) por aqui.
    Enquanto o livro não chega,continua a alimentar-nos a alma...

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  2. Tem gente com muito maior capacidade e condições necessárias para tal ousadia... e dizem que planejam fazer isso. Quem sabe um dia acontece?

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  3. Retrato da cidade que me devolve à memória traços que pensava perdidos. Obrigada Zê Pê. Um abraço grande trans-oceanos para ti|

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  4. Madalena,
    A tua visita é sempre muito especial. Que bom que estás viajando junto nestas memórias.
    Beijo grande para ti.

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  5. "...aquele sujeito da mesa ao lado; quem é ele, que faz ele, que está sempre na mesa do lado?..."

    Eles sempre faziam parte do dia-a-dia colonial de muita gente. Uma sombra sempre a ouvir e confirmar o velho ditado que diz; "a exceção que confirma a regra" da beleza do folclore, panacéia dos tempos livres e gentes daquela terra.

    Tó Maria

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